Drogas, sexo, rock and roll e estesia

Certas drogas tem muito poder: ultimamente tenho sofrido delírios e palpitações; borboletas vêm dançar no meu estômago (situado muito próximo ao coração); sinto um ‘frisson’ na base da coluna, subindo à nuca, aos cabelos, e se entranhando nos miolos, ao mesmo tempo em que se espalha até os dedos das mãos e dos pés e deixam em curiosa comichão as plantas desses e as palmas daquelas.

A sensação não é nada parecida com quando fui sedada com cetamina para procedimento cirúrgico: 'apaguei’. Acordando aos poucos, parecia que tornava não a mim, mas a uma montanha russa com trilhos nunca paralelos, que criavam curvas indecentes e quedas abruptas, luzes pisca-pisca multicoloridas e respeitável barulho cacofônico, como abelhas em Babel. E eu no carrinho do brinquedo, sem cinto de segurança e com frio na barriga, e o zumbido saía dos meus ouvidos, e os pontos brilhantes, vibrantes, por trás de minha pupilas – e não adiantava tapar as orelhas nem fechar os olhos.

“Morri e estou no inferno”, concluí meio temerosa, meio eufórica, como da primeira vez em que fiz sexo. Ao longo de semanas escalei abismos emocionais e senti ânsias de vômito e de esquecer (não o sexo, ora, essa outra confusão!...).

Menos de um ano depois passei de novo pela anestesia e seus efeitos. É bom saber o que esperar, então, ao me perceber acordando, concentrei-me em manter cativos os devaneios da oralidade, da outra vez perdidos de vista – ou de ouvido – ou da memória – e causadores de certo espanto entre o corpo médico e alguns familiares. (Não sei a composição do ‘soro da verdade’, mas que poderia conter cetamina, ah, poderia!...)

Na terceira vez em que necessitei da droga, escafedi-me. Lúcida e doloridamente – muito, muito! – submeti-me a um exame via de regra aplicado sob anestesia geral de curto ciclo. O inédito procedimento, escolha minha (“Não vai ter anestesia, não? Ela é louca?!”), fez crescer o fluxo e a permanência na sala do exame de médicos (staff, residentes e ‘quase’ – os estudantes sextanistas), enfermeiros e técnicos afins, assistente social, psicólogo. Faltaram pároco e pastor, os bombeiros quase foram chamados, mas juro: eu aguentaria o próprio diabo me cutucando com o garfão, apenas não viveria novamente aquela alucinação misturada ao enjoo, ao tremor na espinha, ao medo e à vergonha do depois. Além do mais, a novidade acabara e o resto eu podia controlar...

Eu fora uma moça valente e como prêmio exigi gelatina de uva; por mais oito dias fiquei entubada; em dieta federal por mais dois meses, e o gostinho só então me foi satisfeito. Realidade dura, aquela!

Bom, há pessoas que fogem da dura realidade e fazem poesia (vivem ‘noutra real’, como disse um poeta-pensador recantista, citando outro); há gente que não aguenta a realidade e se droga.

Certas drogas tem um poder!

Os poemas de Carlos Moraes tem efeito de queda livre, mergulho em rio profundo, intenso, densas correntes; o salto afoga, faz emergir, tossir o ar estagnado, revigorar... Os contos de Umberto Erê me viciaram em linhas perpendiculares, concorrentes, oblíquas, em tangentes, arcos e cordas – tanto em círculos como em violão - neste, vício antigo, reinventado quando imagino as estórias em formato de canção medieval (e se isso não é puro delírio, não sei mais o que o seria...). E tem os sonetos, indrisos e trovas de Cyro Mascarenhas: parece que se bastam em perfeição, as imagens mágicas, a métrica contida e tonitroante, as rimas potentes; os versos são como droga correta, cujos efeitos colaterais fecham o ciclo virtuoso. Os poetrix de Dulcie fascinam e eu fico aranha bêbada, tecendo minha própria armadilha; busco além de seus (des)hábitos gramaticais e nunca é o bastante, e eu sei que vem mais. E mais.

O quê? Ah, sim, sobre ‘rock and roll’... Mas neste ano quase nem houve, não foi? E axé music não me dá barato, não! Pois é: tem um pessoal que avalia a realidade e se droga de certas emoções, alguns conceitos e meras circunstâncias, e põe-se a criar poesia – mas cria, mesmo, são outras drogas.

E tem gente que subverte a realidade e se poetiza.

Estesia tem um poder!

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 29/09/2011
Reeditado em 31/01/2014
Código do texto: T3247498
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