Igual para todos

Tivera uma vida muito próspera. Nunca aprendera a se curvar. Desde jovem metido nos negócios do pai. Falava alto aos peões da fazenda ou dos diversos empreendimentos da família. De espírito firme e decidido não esperava a sua hora, a fazia. As coisas ao seu redor funcionavam. Quando chegava, lubrificavam-se as engrenagens. Agregados, empregados, mulher e filhos. Todos sabiam não ser muito saudável não estar sempre a postos quando ele estalava os dedos. Homem íntegro. Honrado. Pagava suas contas em dia por isso não admitia atrasos. Tê-lo como credor significava estar em suas mãos. Era muito justo.

Tinha muitos filhos, dentro e fora do casamento afinal Deus disse: “crescei, multiplicai e povoai a terra.” Bancava suas extravagâncias com generosidade. Arcava sempre com as conseqüências de seus escorregões. Quem é que se arriscaria a questionar a sua conduta? Não devia nada a ninguém. Aliás, tinha sempre algum favor a receber das principais autoridades da sua pequena cidade. Quem iria se meter a besta.

Viveu assim em paz. Teve vida longa e profícua. Gerou empregos, levou o progresso a uma região que existiu antes e depois dele. Ensinou a seus filhos a não esperar nada das outras pessoas, a lutarem muito e a defenderem o que é seu. “Cada qual é responsável por si. Não responsabilize ninguém por si mesmo nem sinta-se responsável por ninguém. Pague por tudo que você precisar. Seja justo. “Sempre encerrava um discurso repetindo: “a lei é igual para todos” Apregoava aos quatro ventos essas máximas de sua estranha filosofia. Até que um dia deparou-se com o único oponente que ousou enfrentá-lo: o tempo.

Aos noventa anos. O corpo aprumado ainda, a cabeça altiva, olhos perscrutadores, mas a mente vacilando entre abismos de esquecimento e delírios, Interditado pelos filhos, foi viver num lugar onde as pessoas já não reagiam às ordens vociferadas, nem se interessavam por cifras. A maioria já havia compreendido que não conseguiria transferir parte alguma de seu patrimônio para o outro lado. Percebeu de repente que não poderia jamais exercer qualquer domínio sobre aquelas pessoas. O mundo delas era muito diferente do seu. Elas se curvavam obsequiosas umas para com as outras, fracas, impotentes, lastimosas. Ele empertigava-se, gritando determinações agressivas que se perdiam nos corredores sem qualquer sucesso. Ao invés de o atenderem, ligeiras, como em outros tempos, as pessoas agora simplesmente o evitavam, ignoravam como se não lhe tivessem qualquer respeito. Os enfermeiros impunham-lhe espetadas, levavam-lhe ao banho contra sua vontade, tratavam-lhe como um imprestável chamando-lhe de vovô com aquela vozinha doce, efeminada. - Cruz credo! Ele retrucava: - Seje home, rapaz. Não adiantava. Gente esquisita aquela, tentando empurrar-lhe o prato de sopa goela abaixo.

Andava pelo pátio perscrutando os muros. Tinha de haver uma forma de sair dali. Tentava subornar a faxineira, a copeira, as enfermeiras das outras alas. Prometia fortunas aos visitantes. Tornaria muito rico aquele que o conseguisse devolver-lhe a vida que lhe tiraram.

Um dia cismava de falar com o prefeito. Iria oferecer-lhe apoio nas próximas eleições. - Liguem para o gerente do meu banco. - Quero o meu advogado.

Nunca lhe chamaram nenhum daqueles de quem solicitou a presença, mas numa tarde fria de agosto chamaram-lhe o médico que deu-lhe o visto de partida com um diagnóstico de senilidade, o padre que tentou ensinar-lhe a supremacia da misericórdia sobre a justiça e, por fim, o agente funerário. Nesse dia recebeu outra vez a atenção de todos os familiares. O prefeito compareceu, muito alinhado, num terno preto e proferiu um discurso macarrônico que propunha a canonização daquele santo homem. Encerrou com a frase original: - Que a terra lhe seja leve!

Nunca fora tão homenageado, mas do seu paletó de madeira, mantinha indiferente a sua frieza e sisudez.

Deram seu nome, precedido do título de coronel, a uma rua da cidade e honraram-lhe com um busto carrancudo na praça.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 29/09/2011
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