Lia Gógol na fila do posto de saúde

Voltemos dois anos. Minha garganta está incomodando. Começou com uma gripe, uma gripe forte, mas depois a gripe se foi e a dor de garganta continuou. Não é bem dor. Incômodo mesmo. Estou com o bichinho do ramram. E tossindo mais do que o normal. Às vezes minha voz sai falhada. Pois eu vou ao médico então. Ver do que se trata isso. Se eu tivesse um plano de saúde, iria procurar um médico especialista. Um otorrino, um desses aí. Mas lá em casa não temos nenhum plano e nem dinheiro para consultas particulares. Por sorte, há um posto de saúde lá perto. Mas sabe como é posto de saúde, né. Tem que madrugar pra conseguir ser atendido, às vezes mal atendido. Decido enfrentar.

Descobri que o posto de saúde começa a atender às 8h. O horário é bom. Os funcionários podem dormir até lá pelas 7h, se morarem perto. O cidadão de bem que quiser ser atendido, no entanto, deve acordar por volta das 5h. É isso que eu faço. Acabei de acordar e tomo um café apressado. Vou ter que esperar muito tempo, então decido pegar alguma coisa para ler. Eu gosto de ler, e de vez em quando tenho uns acessos, que me fazem ler mais do que o normal. Estou numa dessas fases. Descobri há pouco uma biblioteca na cidade. Comecei a ler autores que nunca havia lido. Ando interessado nessa coisa de literatura russa. Dostoievski, esses caras. O último que peguei foi um tal de Gógol. Nikolai Vassílievitch Gógol. Ô nominho. Taras Bulba, o livro que peguei. Comecei a ler há uns dois dias. Até que estou gostando. Às vezes me atrapalho um pouco na leitura. Mas estou gostando. Vou levar pra ler lá na fila do posto. Tenho mais de duas horas pra ler.

O pior é que eu acordo tão cedo e não sou o primeiro a chegar. Já tem duas mulheres lá. Impressionante. O clínico-geral atende 15 pessoas por dias. É uma mulher, aliás. Mas dessas 15, são 6 consultas agendadas para os idosos. Sobram 9. Eu fui o terceiro, então estou tranquilo. Vou ser atendido hoje mesmo. Está um pouco frio aqui fora. É um banco. As pessoas chegam e vão sentando conforme a ordem de chegada. Está muito escuro ainda. Vou ver o dia amanhecer. Bom. Então vamos ler. Taras Bulba. Esses russos são meio estranhos. Parece que vivem num mundo à parte. Que história a desse livro! Fisicamente, eu estou ali, sentado no banco de um posto de saúde, antes do sol nascer. Mas, na verdade, eu estou no meio de uma terrível guerra. Coisa de cossacos ucranianos contra os polacos. Está tenso o negócio. Agora há pouco entrou uma mulher na história. Uma polaca. O filho do Taras Bulba gosta dela. É sempre a mesma coisa, isso de gostar do inimigo. Chegou também uma mulher ao meu lado no banco. Trouxe uma criança. O pediatra também atende aqui. Ou seja, essa mulher não conta entre os 9. Pra pediatra, tem uma contagem própria. Nenhuma consulta agendada, imagino. Aí ela senta do meu lado. E eu continuo lendo. As mulheres conversam. Atrapalham a minha leitura, na verdade.

Às vezes eu paro de ler. Fico olhando o dia nascer. Ou ouvindo as mulheres mesmo. E lembro de Isadora. Fico pensando em Isadora. A gente está numa fase terrível. Desejos a flor da pele. E eu penso bobagem ali também. Na fila do posto de saúde. Leio Gógol, ouço as mulheres e penso em fazer bobagens com Isadora. Terrível. A fila só aumenta, e já não cabe no banco. Devia ter um banco maior. É engraçado a gente pedir um banco maior. Devia pedir é para não estar ali desde a madrugada. O dia já nasceu, e eu já não consigo ler nada. Vem então uma mulher. Nos cumprimenta, nós que estamos no começo da fila. Abre a porta. O posto de saúde está finalmente aberto. Entramos.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 28/09/2011
Reeditado em 28/09/2011
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