Eu decido
“A miséria não nasce do pó e a fadiga não brota da terra. E o homem gera seu próprio sofrimento como as faíscas voam para cima.” Jó 5, 6-7
Temos o triste hábito de responsabilizar as outras pessoas, ao sistema, ao governo e a Deus pelos nossos fracassos e infortúnios. Tudo o que me acontece de ruim é culpa de alguém ou de algo, como se o Universo inteiro conspirasse contra mim. Como se eu tivesse importância tal que merecesse tamanha atenção. Contudo se eu estou bem, se boas coisas estão me acontecendo, aí sim, o mérito é só meu. Eu mereço. Eu fiz por onde.
Numa palestra sobre o pecado, que tive o privilégio de ouvir, o padre dizia: “certas pessoas vão se confessar, contam primeiro o pecado do outro, _ padre, meu marido chegou bêbado e eu... _padre, minha mulher não estava cumprindo com suas obrigações conjugais, então eu... Eu sempre digo ao penitente para contar só os seus pecados e deixar que o outro confesse os seus quando reconhecê-los.”
E aquela dificuldade de assumir os nossos erros? É como se não pudéssemos errar nunca. Pretensão? Desejo de igualar-se a Deus? Ou complexo de santidade? É só detectar a falha e nosso cérebro já começa a trabalhar desesperadamente, criando um processo que nos justifique. A primeira medida é achar um bode expiatório. Esse nosso grave defeito manifesta-se sempre acompanhado de outro também muito sério: o julgamento. Como julgamos os outros! E como julgamos mal! O problema é que quando julgo uma pessoa como sendo má, planto no coração dessa pessoa uma maldade que irá se reverter contra mim. A pessoa, no coração da qual eu plantei a maldade, irá ver nos meus olhos, nos meus gestos e nas minhas palavras a minha aversão, e conseqüentemente perderá qualquer possível traço de simpatia por mim e eu terei perdido os benefícios de sua amizade.
Os pensamentos e as palavras têm uma força incrível. Há muitos anos, quando tentava tirar minha carta de habilitação tive a oportunidade de comprovar como o ressentimento pode atrasar nossa vida. Fui reprovado duas vezes no exame de direção. Na primeira vez o examinador me tratou com educação e respeito, disse-me que eu ainda não estava pronto e incentivou-me a continuar me esforçando. O examinador da segunda vez era um senhor de uns cinquenta anos, já grisalho, usava um bonito cavanhaque. Parecia uma pessoa muito distinta, mas não devia estar num bom dia, foi profundamente desagradável comigo. Suas palavras mal educadas e seu olhar duro ficaram registrados em minha memória desenvolvendo no meu coração uma angustiante revolta. Eu estava acostumado a ser tratado como gente. Voltei para casa humilhado e passei um ano sem o menor desejo de voltar a dirigir.
Um dia encontrei um antigo instrutor. Perguntou-me pela carta e contei-lhe o ocorrido. Disse-me que alguém só pode me deixar com raiva se eu permitir. Que uma pessoa pode fazer tudo para que eu a odeie e posso, mesmo assim, amá-la. Completou citando Joseph Murphy: “A água só pode afundar o navio se puder entrar nele.”
Decidi que ia perdoar o homem do cavanhaque. Não era difícil para mim lembrar os seus traços e a sua voz. Estavam gravados em minha mente. Comecei todas as noites a fazer um exercício mental de transformar aquele rosto duro, de pessoa infeliz num rosto alegre e bondoso. No dia seguinte à noite em que consegui mentalizá-lo sorrindo pela primeira vez, marquei um novo exame.
Dessa vez o examinador era um senhor idoso. Admirei-me de que um homem daquela idade ainda não houvesse se aposentado. Não se deu ao trabalho de dizer bom dia.
_ É sua vez? Perguntou.
_ Sim, senhor.
_ O que é que está esperando para entrar no carro?
Não respondi, mas esperava uma autorização dele. Bem estava dada. Sentei-me ao volante. Ele entrou no carro. Ajustei o banco, os retrovisores, coloquei o sinto. Não sei se por excesso de respeito, esperava que ele desse a ordem para iniciar a prova. Como ela não viesse perguntei:
_ Posso ligar o carro?
Sua voz saiu como uma chicotada:
_ Experimenta sair sem ligar.
Olhei para ele com bondade. A mesma bondade, quase ternura, com que eu olhava para meu amável e saudoso avô. Tinha feito a escolha de não deixá-lo me irritar, por mais que ele quisesse. Liguei o veículo, dei seta, conferi o trânsito, arranquei, engatei uma Segunda.
_ Naquele dia eu trouxe minha carta.