MINHA SEGUNDA COPA DO MUNDO
Copa do Mundo nos Estados Unidos. 1994. Eu era um adolescente de posse de todas as suas prerrogativas: tímida rebeldia, desejo de reformar o mundo e um milhão de sonhos na capanga. Naturalmente, acompanhei a essa Copa me sentindo muito mais experiente, muito mais sábio, afinal eu já acumulava a bagagem de um Mundial como torcedor e havia acompanhado a seleção brasileira em todos os jogos das Eliminatórias. Meu pai já não era mais o meu guru. Eu já ousava contestá-lo. Meus olhos já não mais precisavam ser tutelados, guiados. Talvez aí descobri que já era um homem. Já não era mais o indefeso menino que via o mundo através dos olhos do meu pai.
Até hoje não me perdoo por perder o espetacular jogo pré-Copa entre Brasil e Uruguai, no Maracanã. Eu ouvia dizer muito de Romário. Que era a solução para todos os nossos problemas. Que era o homem certo para nos guiar no Mundial. Acontece que o Brasil tinha uma missão a cumprir antes de carimbar o passaporte para a Copa do Mundo. Era preciso passar por cima do cadáver do Uruguai. A previsão era de uma batalha campal. Se dependesse dos uruguaios, até com baixas. Graças às regras da Fifa e aos Direitos Humanos a barbárie uruguaia se resumiu a pontapés e pequenas agressões.
Mas lá estava Romário, convocado a contragosto pelo técnico Carlos Alberto Parreira. Convocado pelo povo brasileiro. Pela imprensa brasileira. Com toda a sua pose de gênio, Romário agiu de acordo com seus instintos. Romário é um animal que fareja o gol a quilômetros de distância. Como uma fera faminta, sabe o momento perfeito de dar o bote. Mesmo saciado, ele não tinha o hábito de poupar suas presas. Gostava de imputar dor e sofrimento às vítimas. Gostava de expor suas vítimas à humilhação pública. A piedade nunca foi uma de suas virtudes. Pobres uruguaios! Romário marca dois gols, dá chapéu, dá caneta, dá passe de efeito, dá de seu veneno aos rivais. Aos brasileiros dá a vaga na Copa do Mundo. Dá o direito de sonhar.
Estados Unidos. A Rússia se oferece como primeiro desafiante. Eu já havia elegido Romário como meu novo herói. Esperava que ele fizesse chover. Esperava que ele destruísse a Rússia. Ele não frustrou os meus sonhos. Fez o primeiro gol, mesmo terrivelmente marcado por um bolchevique, que parecia estar armado. Romário aproveitou o vão das pernas do russo para tocar de leve a bola cruzada para o fundo das redes. No segundo tempo, ele sofre pênalti, que Raí marca. 2 a 0. O primeiro inimigo havia sucumbido. Mas havia muitos outros, um exército deles. Veio a seleção de Camarões, com seus jogadores enormes, viris, sem qualquer sinal de fraternidade. Brasil 3 a 0, com Romário marcando novamente e sendo o nome do jogo. Terceiro jogo: contra a Suécia. Brasil entra de azul, para meu espanto e desespero. De um lado os baixinhos Romário, Bebeto, Jorginho, Leonardo. Do outro lado o exército viking, com seus gigantes. A tática sueca era deixar a bola no alto, longe do alcance dos brasileiros. Toda bola alçada na área brasileira era um martírio. Andersson, o centroavante sueco, alto, não perdia uma de cabeça. A impressão que passava é que poderia até lutar boxe usando a sua cabeça. Para mim era um monstro terrível. Um Golias a nos desafiar. Um filisteu a caçoar de nós. Curiosamente, fez 1 a 0 para a Suécia, usando a perna direita. Em um momento qualquer, quando ninguém ousava embalar qualquer sonho, surge Romário com a bola, passa incólume em meio à defesa viking e, de bico, faz com que a bola vença Ravelli e morra dentro do gol sueco. 1 a 1. Primeiro lugar do grupo. Estávamos nas oitavas-de-final.
Oitavas-de-final. Vivinho da silva o fantasma de quatro anos antes. Do outro lado os Estados Unidos, os donos da casa. 4 de julho em Dallas. Dia que se comemora a independência norte-americana. Feriado nacional. O povo mais poderoso do mundo havia elegido o Brasil como o invasor a ser batido, a ser expulso da Copa. Confesso que temi, secretamente eu temi. Jogo duro. Tenso. Romário tentava de todas formas ludibriar a defesa norte-americana, que parecia estar imune a qualquer investida, como uma fortaleza sólida, bem protegida. Romário encontra com a bola no meio de campo e resolve, arrogantemente, que havia chegado o momento. Ignora seus marcadores. Mas Romário, entediado com a glória, resolve passar a bola para Bebeto, livre, no canto direito da grande área. Bebeto bate de primeira, no contrapé do goleiro Meola. A nação norte-americana recolhe suas bandeiras. Renuncia ao sonho da bola. Haviam ungido o 4 de julho para ser o dia do milagre. O dia que mandariam o todo-poderoso Brasil para casa. 4 de julho continuou sendo apenas o dia da independência americana.
Quartas-de-final. Um fantasma expurgado. Do outro lado da arena estava a temida Holanda. O Brasil tinha Branco na vaga de Leonardo, expulso da Copa após fraturar o rosto de um norte-americano na partida anterior. O jogo mais eletrizante da Copa. Brasil novamente com sua segunda pele: azul. Holanda de branco. Logo de cara, Romário em um salto de balé, faz 1 a 0 para o Brasil. Em seguida, após passe do capitão Dunga em profundidade, Romário impedido, virou as costas para a bola e caminhou, trazendo consigo seu marcador implacável. Romário dissimulou, encarnou Chaplin. A bola sobra inteira para Bebeto, que ainda driblou o goleiro antes de marcar o segundo tento brasileiro. Havíamos liquidado o adversário. Matamos fácil, pensávamos. A Holanda ressurge do vale de ossos e empata o jogo. Mas Deus é brasileiro: falta próximo à área da Holanda. Branco, o renegado, o contestado, ajeita a bola. Não havia uma só pessoa no mundo nessa época que não desconfiasse que Branco fosse um mutante, que possuía um míssel implantado na perna esquerda. Branco chuta. Há uma barreira humana entre Branco e o goleiro holandês. Em um piscar de olhos a bola passa pela barreira como se ela nem existisse. Romário, que estava infiltrado na barreira, se contorce, para a bola seguir seu destino. Gol do Brasil. 3 a 2. Estávamos na semi-final.
Novamente os vikings estavam no nosso caminho. A Suécia era a torre a ser conquistada antes de estarmos diante do desafio do tetra. Eles pareciam maiores do que no primeiro jogo. Pareciam mais bárbaros, mais sanguinários. Havia sangue nos olhos dos suecos. Mas Romário não temia. E em uma tremenda saia-justa para a lógica, Romário marca de cabeça o gol salvador brasileiro. É o mesmo que um homem lutar contra um lobo e o derrotar com uma mordida. A final era realidade. Após 24 anos estávamos na final de uma Copa do Mundo. E novamente contra o mesmo adversário: a Itália.
Jogo do século. Choque de tricampeões mundiais. O vencedor seria o primeiro tetracampeão e, naturalmente o rei do mundo. Quem iria considerar os Estados Unidos como a maior potência do mundo, quando ali estavam gladiando diante dos olhos de bilhões de pessoas os dois legítimos candidatos? De um lado Roberto Baggio, considerado um dos maiores atacantes italianos de todos os tempos. Do outro, do nosso lado, Romário, o nosso messias. Baggio estava ferido. Terrivelmente contundido. Jogou em um ato de extremo sacrifício. Jogou com seus músculos sangrando. Havia dor em todos os seus movimentos. O Brasil temia a Itália. A Itália temia o Brasil. Era uma batalha estranha. Poucos tiros. Muitas estratégias, muitas emboscadas frustradas. Guerra travada dentro das trincheiras.
Meu pai, meu irmão e eu assistimos o jogo na casa de um vizinho, na companhia de um batalhão de torcedores. Ao final dos 90 minutos, e um 0 a 0 teimoso, fomos informados da prorrogação. Meu coração já não conseguia cumprir sua função. Ele havia sido programado para 90 minutos de solavancos, de perturbação extrema. Mais 30 minutos seria um risco para mim. E para milhões. Era urgente a necessidade de um cardiologista. Mas onde achar um naquele momento? Seguimos o jogo. Seguimos a vida. Novo 0 a 0. Romário não estava tão soberano como durante todo o Mundial. Baggio agonizava. Era uma tortura coletiva. Decisão por pênaltis. Pela primeira vez desde 1930 uma Copa seria decidida dessa forma. E ali, estávamos nós, sentenciados a tal pena.
No momento das cobranças, meu irmão, temendo um precoce infarto, deixou-nos, em desabalada correria. Não suportaria ver os pênaltis. Baresi, o capitão da Itália chuta para fora. Nossos gritos de comemoração foram um chamado para meu irmão, voltar correndo e, se filiar novamente como torcedor. Romário não estava entre os batedores escalados, mas acabou se escalando. Não foi um herói omisso. Olhos distantes. Bate. A bola beija a trave e, calma e silenciosa, cai dentro do gol. Nosso herói havia cumprido sua missão na Copa do Mundo. Após quase todos os italianos e brasileiros escolhidos para a missão, terem acertado e errado, chega a vez de Baggio, o herói italiano. Confesso, que com a poeira dos anos bem assentada, me compadeço de Baggio. Ao chutar a bola em parábola, por cima do travessão de Taffarel, Baggio fez a alegria de 150 milhões de brasileiros. Não tínhamos mais tempo para as nossas misérias. Éramos primeiro-mundo naquele momento. O verbo se fez carne e habitou entre nós. Não imaginei, sinceramente, que houvesse a necessidade de voltar a sentir fome, frio ou dor depois daquela Copa. Naquela época, para mim, ganhar a Copa ou ir para o céu tinha o mesmo significado, a mesma glória, o mesmo gozo eterno.