Nós do Interior
Nós do interior...
Publicado em 26/09/2011 no Jornal on line – Leopoldinense, (www.leopoldinense.com.br)
Nós do interior, deste imenso “interiorzão” brasileiro, habitantes de cidadezinhas pequenas, com menos de cem mil habitantes, somos importantes, muito importantes. Não me refiro ao valor do que produzimos, contribuindo para a formação do tão falado PIB – Produto Interno Bruto – mas sim do valor impossível de ser quantificado dos nossos costumes simples, das belezas naturais das nossas localidades, das certezas morais que cultivamos, do espírito familiar que preside nossas vidas, das amizades que preservamos com tanto zelo, nestes tempos complicados.
Quero chamar a atenção para uma forma de vida que está se perdendo aos poucos e quando se for de todo vai ser a maior desastre nacional. A forma de vida a que me refiro, até há algumas décadas atrás era o estilo majoritariamente dominante da nossa vida de cidadãos do interior. Éramos a maioria do povo brasileiro – migrávamos para as cidades grandes, mas mantínhamos vínculos estreitos com as nossas origens.
Estou escrevendo em Caxias do Sul, em plena serra gaúcha. Vejam só como esta vida trança seu enredo: cheguei a Leopoldina, que ainda não conheço, pelas mãos de uma senhora, que nasceu em Guidoval e soube de mim pela leitura de um artigo que escrevi sobre um amigo falecido no Rio de Janeiro, nascido na pequena e gostosa cidade mineira. Um sobrinho dele, que mora em Anápolis de Goiás, pediu a uma prima, minha conhecida e residente em Cuiabá, para que escrevesse alguma coisa sobre o tio recém desaparecido. Como resultado de todos estes contatos estou aqui conversando com vocês. Ah! meus queridos amigos de Minas Gerais, como vocês são importantes para mim pelas amizades que fiz, pelo acolhimento carinhoso que sempre recebo: sinto-me em casa quando convivo com mineiros e mineiras ou aí estou. É uma teia de conhecimentos firmes entre pessoas de uma mesma família, de amigos, ou até de gente que não se conhece e que mesmo antes da Internet já se comunicavam por cartas, e, se mais ricos, por telefone. Prática que se faz com gosto narrando os últimos acontecimentos, tecendo comentários simples, mas sábios, sobre a vida que transcorre frente aos nossos olhos. Essa maneira de viver, de se lembrar dos outros, de cultivar relacionamentos, quase não existe mais nas cidades grandes. Lá se trabalha, se sobrevive, se tenta escapar dos assaltos, procurando não demorar muito no trânsito e chegar logo nos “apertamentos”, se trancar e ficar como que paralisado na frente das idiotices transmitidas pela televisão.
As maneiras simples e prazerosas de viver, aquelas que fixam as pessoas às suas paragens, que fortalecem modos de pensar e estilos de vida, sustentando e fortalecendo relacionamentos não podem ser perdidos. Cabe a nós do interior que esta responsabilidade histórica de salvar o que a nação tem de melhor na sua maneira de ser – a solidariedade. Pois quando vem uma aflição, uma solidão que machuca, as pessoas relembram sua terra natal: pais, irmãos, tios e primos, amigos e padrinhos, a velha professora, as ruas tranqüilas, a Igreja, a ida a sorveteria, o passeio na praça, as festas, as procissões, o levar um pedaço de bolo recém feito para o vizinho provar, rezar o terço em grupo, colocar as cadeiras na calçada nas noites calorentas para comentar o dia que passou, se preocupar com as doenças dos conhecidos, se alegrar com emprego que a sobrinha da amiga conseguiu, organizar uma serenata e se ficar feliz com o sorriso das moças que ainda gostam de ouvir canções de amor. Ter uma pequena horta, algumas arvores frutíferas no quintal, um galinheiro com um galo que canta lindo na madrugada, o cachorro que ronda a casa e brinca com as crianças, o jardim com flores para se cuidar.
Esta certeza de que se pertence a algum lugar, bem caracterizado pela sua maneira de existir e falar, onde se é compreendido, aceito e querido, conforta e dá forças para continuar vivendo, é muito importante. Tece uma malha de relacionamentos que sustenta a nacionalidade, num momento histórico de tanta descrença, de tanto distanciamento entre as pessoas, de tanto banditismo e corrupção, de tanta confusão moral. Somos nós, os do interior, um povo com pessoas concretas que vive nas nossas cidades despretensiosas e dão testemunho diário, seguro, de que ainda é possível existir de forma diferente: uma existência mais humana e gentil. Muitos se lembram, com saudades, da terra em que cresceram e guardam, como um segredo, a intenção, sempre postergada, de um dia poder voltar para lá e ser novamente feliz. Vão encontrar alguns poucos companheiros do seu tempo de juventude, mais idosos, alguns já falecidos, mas perdura o afeto. A intimidade que conforta resiste e se pode falar e ouvir comentários puros, que vem de dentro de corações compreensivos e amigos, como aquelas conversas de um passado já distante que nos formaram e fizeram de nós cidadãos e cidadãs respeitáveis. Persiste, resistindo o tempo, a recordação de uma época diferente, mais simples e espontânea, mais amiga e cordial, mais autenticamente humana. As pessoas valiam pelo que eram e como eram e todas, suas casas, conversas, sorrisos e olhares sérios, tinham cor própria, cheiro especial, timbre inigualável, ritmo e rotina de vida amena, tudo autentico e honesto, não vocabulário, gestos e trejeitos imitando os das revistas ou das novelas da televisão.
É certo que o mundo será cada vez mais urbano e restritivo, nos relacionamentos humanos. É verdade que a vida exige dedicação ao trabalho, cada vez mais competitivo e exigente em termos de qualificação. Mas se deve preservar um lugar, na memória ou lá depois daquela curva meio distante, depois daquele morro que ainda tem um matinho no cocuruto, aonde ainda existe um lugar tocado pelos sonhos das crianças, que sempre queremos voltar a ser, e ao qual podemos retornar, de vez em quando, mesmo em sonhos amenos, para nos revigoráramos com a certeza do reencontro com a fé, com os relacionamentos, com as amizades, com as paisagens que fazem a moldura real e permanente das nossas vidas, nos permitindo viver com dignidade feliz e despretensiosa, sabendo que temos, na nossa cidade, lá no interior, nossas raízes que não podem nem devem ser cortadas, sob pena de morrermos já em vida, cada vez mais sem saber de onde viemos e para onde devemos ir...
Eurico de Andrade Neves Borba, 71, aposentado, escritor, ex-professor da PUC RIO, ex Presidente do IBGE, reside em Ana Rech, Caxias do Sul – RS..