É o tipo da coisa

Ouço o bater de palmas frouxo no meu portão e já adivinho quem seja. Não me desgosta de todo. Até que aprecio a conversa mole do moço. Dei-lhe o apelido de Zé D’amanhã por causa de seu péssimo costume de tudo adiar. Aliás, minto. Tudo não, prova disso é que tem seis filhos, mas creio que tudo o mais ele protela o quanto possa. Desde que o conheço que está desempregado, e olha que já faz tempo absurdo, se alguém o informa de uma vaga no São Geraldo ele vai procurá-la no Romeu Duarte. Não quer correr o risco de encontrar uma boa oportunidade numa época em que as famílias ditas carentes são beneficiadas com tantas bolsas. Ter a carteira de trabalho assinada seria prejuízo. Imagina um camarada com seis crianças! Ainda mais que sua mulher tem a disposição para ir atrás de seus direitos de cidadã brasileira. Porque também se dependesse dele... Hum!

Saio ao portão e lá está ele postado pacientemente, o cabelo desgrenhado, a barba por fazer, bermuda de chitão camisa aberta no peito e chinelas de borracha. Cá pra nós: você daria emprego a uma pessoa que se apresentasse assim? É a própria imagem do desmazelo.

_ E aí, Zé? Como vão as coisas?

É claro que eu já sei como vão as coisas e já sei até com que palavras ele vai me dizer, mas como é praxe perguntar...

_ É o tipo da coisa. To precisando da sua ajuda de novo.

_ O que foi? Acabou o gás?

_ Não. Desta vez é um probleminha com a luz.

_ Ainda não arranjou o emprego.

_ É o tipo da coisa. Emprego ta complicado, sô. Amanhã acho que consigo um bico. Era pra ter sido hoje mas eu tinha que resolver o problema da luz. Aí cê sabe. Amanhã.

Vai falando e sacando a nota fiscal de cabeçalho verde nossa velha conhecida, só que a dele está dobrada, amarfanhada e com horrorosos borrões de gordura e poeira. Abro o mesquinho papel e só pelo gráfico do histórico de consumo já vislumbro a imensidão da coisa: a barra do último mês está lá nas grimpas. Não era um probleminha.

_ Cento e oitenta e seis reais, Zé? O que foi que você aprontou?

_ É o tipo da coisa. Eu ganhei uma geladeira usada e acho que a bichinha ta puxando muita força.

Acreditem. Os gregos continuam enviando seus presentes. E ainda acham troianos que os aceite. Resolvo ir ver de perto a jóia que nosso amigo ganhou. Meu Deus, que coisa medonha! Daquela arredondadas, gigantescas, na cor azul, com aquele lindo e sutil puxador cromado que vai de alto a baixo na porta escangalhada, a borracha de vedação está estourada, os pés quebrados, uma maresia em cima onde presumo ter ficado assentado por décadas o impávido pingüim de louça. A bichinha deve pesar meia tonelada e o ruído do motor lembra a aterrissagem de um Boeing. Embasbacado, olho para ele de pé ali no meio da peça exígua que lhe servia de cozinha, a enorme prole ao seu redor, silente como quem espera um veredicto.

_ Como é que você aceita um presente como este, Zé?

_ É o tipo da coisa. Não sou pobre orgulhoso. Se eu não aceitasse, o que é que o cara ia pensar?

_ Não sei o que ele iria pensar, mas sei que deve estar pagando as prestações de uma geladeira nova com a economia que está tendo por ter se livrado dessa aí. Essa preciosidade não vale o que você vai pagar a mais de energia este mês.

- É o tipo da coisa.

_ Vou te dar um conselho, venda-a a um sucateiro imediatamente. O dinheiro já vai ajuda-lo a pagar a conta.

_ Amanhã...

_ Zéééé!

_ Ele fez um gesto peremptório e encerrou o assunto:

_ Amanhã.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 27/09/2011
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