Dia de adjutório

Fiquei olhando as pequenas partículas de gelo saltitando sobre o capô. Nem a chuva torrencial, nem as rajadas de vento que faziam balançar o carro tinham o poder que aquelas inofensivas pedras de granizo tinham de me assustar, resquício de medo de outros tempos. Por um instante arrependi-me de não haver me refugiado com os demais no pequeno quarto coberto de amianto. Com certeza não era mais seguro que no carro, mas pelo menos não estaria só. Olhava o pequeno barraco parcialmente descoberto, semi-oculto na densa cortina de chuva.

_ Oh, Deus! Por que isso agora?

Pergunta comum em tais situações. Há quantos meses não chovia? O dia havia amanhecido lindo. Ensolarado. O céu de um azul diáfano. O vento de final de agosto temperando o calor, brincando na poeira dos terrenos terraplenados e ainda sem construções da vizinhança. Havíamos combinado de refazer o telhado do barraco daquela família pobre, mal ajambrado sobre precárias peças de madeira. Trabalho que teria de ser concluído num só dia a fim de que os moradores não ficassem desabrigados. Desde as sete da manhã estávamos empenhados naquela tarefa: despregar as telhas do madeirame mal colocado e, portanto, propenso a voar pelos ares ao vento no descampado do bairro pobre, recém aberto, onde as raízes das árvores sacrificadas em nome no dito crescimento, jaziam ainda sobre a terra, fazendo recender seu cheiro denunciador da destruição, levantar um pouco mais as paredes do fundo acentuando o pondo de caída da meia-água e refazer a cobertura ordinária. Éramos cinco homens e mesmo considerando que apenas um tinha experiência ainda assim não seria muito serviço não havendo embaraços.

Houve embaraços.

Por volta das duas da tarde o céu começou a se fechar. Nuvens baixas e escuras começaram a se formar vindas do poente. Ameaçadoras. Surgiram as primeiras previsões. As opiniões se divergindo.

_Chove.

_Chove nada, sô.

_ Tamém acho que chove. Podemo chegá a taca si num quisé moiá.

_ Chove não. O vento esparrama ela.

O cearense dono do barraco comungava com a opinião de que não chovia, mas seus olhos assustados e o modo avexado com que ele se pôs a proteger os poucos pertences o contradiziam. O tempo, indiferente ao que cada um achava, foi se modificando. Mesmo os que apostavam que não chovia, por segurança aceleraram o ritmo do trabalho no afã de concluir o mais rápido possível. Pensamento positivo, atitudes não condizentes. Os primeiros pingos, grossos, gelados e impiedosos caíram na terra seca quando terminávamos de cobrir o primeiro cômodo. Corremos todos a guardar tudo o que fosse possível debaixo da cobertura de aparência temporária.

Agora, sozinho no carro eu refletia sobre uma infinidade de coisas: a miséria com suas causas e conseqüências, a solidariedade e a indiferença humanas, Deus e até que ponto Ele interfere em nossas pobres vidas ou na fúria dos elementos. No que leva homens como aqueles meus companheiros ali a entrarem em tais situações. O mestre de obras era um aposentado de setenta e três anos, porém, mais forte e determinado do que eu, havia deixado a esposa idosa e doente em casa, na companhia de uma neta, para estar ali. Os outros dois, um jovem empresário bem sucedido que teria mil outras coisas a fazer e um funcionário público de sessenta e poucos anos gastando seu dia de folga.

Tudo o que meu pobre espírito pedia naquele momento eram coisas temporais: um banho quente e o aconchego da minha casa, contudo, nenhum de nós voltaria as costas àquela gente num momento como aquele. Ou terminaríamos o trabalho ou alojaríamos a família em outro local.

Quando a chuva se reduziu a um chuvisqueiro gelado voltamos ao trabalho, até que a noite nos alcançou. Um grupo de homens cansados, molhados e sujos de lama, mas, um grupo de homens felizes. Havíamos enfim vencido.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 27/09/2011
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