Carinho que sufoca
Costumamos idolatrar nossos filhos. Não é para menos. Nossa visão de pai ou de mãe os torna as coisas mais lindas deste mundo. É bem próprio de um pai ou de uma mãe, exaltar as qualidades dos filhos bem como escamotear seus defeitos. Coruja gabando o pau, e chamamos isso, erroneamente, de amor.
É comum, por exemplo, um pai querer cumprir uma pena no lugar do filho, muitas vezes acontece quando essa pena é, por exemplo, uma multa de trânsito. O amoroso pai chega ao ponto de achar que as autoridades foram injustas aplicando tal pena. O filho está sempre com a razão, embora dirija em alta velocidade e muitas vezes alcoolizado, chegue em casa altas horas acelerando além do necessário, com o som ligado no limite de sua potência, acordando toda a vizinhança e incomodando meio mundo. Ele é jovem. Explica. Estas coisas são próprias da juventude. É assim que um pai amoroso constrói as falhas de caráter do seu filho.
Que pena! Nosso amor devia estar ajudando nossos semelhantes. Prejudico meu filho cada vez que, por amor, deixo de repreendê-lo num erro. Torno-o fraco e dependente cada vez que ao invés de ensiná-lo a enfrentar um problema, resolvo-o por ele. Ensino-o a ser negligente cada vez que apanho a toalha molhada que jogou sobre a cama, recolho os tênis que deixou jogados na sala de estar, lavo-lhe as meias, as cuecas, o prato que usou após todos terem jantado e as louças estarem lavadas. Com esse comportamento não estou sendo gentil. Estou sendo idiota. Meu filho irá crescer achando que é o centro do mundo. Quando tornar-se adulto será prepotente e egoísta. Pensará que as outras pessoas estão aí para servi-lo. Por fim se tornará uma pessoa frustrada, pois ( falemos o português mais claro ) quebrará a cara.
Temos sob nossos cuidados inúmeras vítimas de AVC ( Acidente Vascular Cerebral ), o popular derrame, que normalmente deixa a pessoa incapacitada para algumas funções do dia a dia, por um período de tempo ou, dependendo da pessoa, definitivamente. Para ilustrar como nossa forma de amar pode fazer a diferença vejamos:
Sr. João é um homenzinho franzino, cinqüenta e dois anos, 1.60 m de altura, 50 kg apenas, muito ativo. O Sr. José é um homenzarrão, 110 kg, 1.90 m de altura 56 anos, com a fleuma natural das pessoas muito corpulentas. Qual dessas duas figuras se recuperaria mais rápido de um derrame?
Aconteceu. E eu podia apostar que dentro de pouco tempo o Sr. João iria voltar a andar enquanto Sr. José, com todo aquele peso e toda aquela pachorra levaria muito mais tempo. E não é que aconteceu exatamente o contrário?
Acontece que temos uma propensão a querer facilitar ao máximo a vida das pessoas a que queremos bem, sobretudo se esta encontra-se debilitada por alguma enfermidade como era o caso dos nossos dois heróis. E ambos tinham os mesmos cuidadores. Estes começaram a oferecer-lhes o máximo de comodidade possível. Doía-lhes vê-los sofrerem e davam-lhes tudo nas mãos. Prejudicando-os por amor.
Sr. João, que era muito leve, carregavam nos braços sempre que tinham de levá-lo ao banheiro, ou ao refeitório, ou onde quer que fosse. Ao Sr. José não podiam dar tal regalia. Ofereceram-lhe uma cadeira de rodas que pouco durou, arriando-se sob o enorme peso. Não havia outro jeito senão voltar a andar logo e arrimado numa bengala hoje ele o faz. Já pode ir ao banheiro sozinho, dirige-se ao refeitório quando bem entende, ou vai à sala de televisão sem precisar esperar por um ombro solidário e disponível. Esses exercícios diários estão aos poucos lhe devolvendo a independência.
Ah! O Sr. João?
Vai bem, obrigado. Está gooordo! Quase setenta quilos. Boniiito! Coraaado! Uma beleza! Só um pouco infeliz. Mas estamos cuidado direitinho dele. Não lhe falta nada. Nós o amamos muito.