Dom Juan das marcas
Não costumo escrever sobre tristezas, porque aqui é o meu recanto, meu assento, meu descanço, meu momento. E meu livre pensar busca por satisfação, por prazer...
Porém, hoje, de forma tão arbitrária, insistentemente, a mesma cena me vem à memória. Lembro-me como se fosse hoje daquela turma. A segunda que ganhei para iniciar minha docência. Era uma turminha do jardim da infância. Tão diferente de tudo o que eu esperava encontrar. O Moreira raspava o giz e colava o pó em seu nariz, para mostrar o que seu pai fazia, a During por muito tempo carregou em seu 'macacãozinho' uma encomenda que seu padrasto buscava no meio de todas as manhãs, demorei a entender tamanho zelo. E entre outros, lá estava Douglas Juan. É dele que quero falar.
Juan, como o chamávamos, certo dia chega com o olhar tão caído, a dor estampada em seu rostinho, sem forças para caminhar. Ao se aproximar, vejo suas mãos e parte dos braços queimados. Tive a pior das sensações. Abracei-o imediatamente, chorei com ele, porque era impossível falar. Juan gemia baixinho abraçado em mim. Quisera eu, naquele momento, ter o dom para arrancar as suas marcas e cessar a sua dor. Olhei para a mãe na porta, aquela figura estranha, que ainda conseguia sorrir e perguntei-lhe o que havia acontecido. Ouvi a seguinte explicação:
_ "Sabe o que é professora. Eu ganhei uns cocos e fiz umas cocadinhas pra vender. Deixei o Juan em casa pra ir no centro, e deixei as cocadas secando. Sabe o que ele fez?? Pra eu não descobrir que ele tinha comido uma cocada inteira, ele resolveu dar uma 'mordidinha' em cada uma delas. Aí, quando cheguei, fiquei tão furiosa que botei fogo nos dedos dele, pra que aprenda a não mexer."
Não é necessário narrar meu sentimento nesta hora. Tamanha a inteligência do pequeno Juan. (...) E tomados todos os procedimentos legais, deti-me a ofercer a Juan, o que ele não tinha. Toda minha atenção e carinho. Assim secamos suas marcas, juntos.
Pensando na teoria de' Causa e Efeito', de Isaque Newton, minha profissão é uma das mais difíceis de se obter um resultado imediato. Veja bem, se a cozinheira erra a receita, se esquece ou altera qualquer ingrediente, o efeito é imediato. Se o médico dá um diagnóstico errado, o efeito é visível, ineficácia ou 'o pior'. E assim é com a costureira, com o pedreiro, enfim, agora, o professor não consegue saber o efeito que suas palavras provocarão no seu aluno. Suas palavras, ou a falta delas, bem como suas ações. E talvez nunca saberá. Eu mesma, esperei oito anos para saber o efeito de minhas ações e minhas palavras para com aquela turma. É, oito anos depois, concluindo o ensino fundamental, tive um retorno emocionante, quando meus eternos pequenos e queridos ex-alunos me convidaram para ser madrinha de formatura, relembrando nossos melhores momentos. Significativos pra eles. Gratificante pra mim, enquanto profissional.
No entanto, Juan não estava entre eles. Lembro-me que procurei por seus olhinhos, sonhei com isso, mas não os encontrei. Talvez se perdera durante o processo. Eu não sei bem. Mas o que eu queria mesmo era que eu tivesse feito a mínima diferença em sua vida. Se lhe deixei alguma marca, que tenha sido a mais tênue de todas. A tatuagem dentre as cicatrizes.
Douglas Juan, meu marco.