DIAS SEM INSPIRAÇÃO

Tem dias assim sem inspiração, faltando luz, ausentes de horizontes, desprovidos de esquinas para dobrar, de brisa para revolver os cabelos, de folhas farfalhando músicas para os pássaros, de beija-flores sobrevoando jardins, de borboletas adejando esplendorosas por entre as horas do entardecer. São dias sem o brilho das palavras enamoradas usualmente distribuídas por lábios ardentes em simpáticos instantes, neles não se encontram o índigo celeste, o sol se pondo no ocaso, casais apaixonados se beijando às margens dos rios, nas praças, nas ruas, crianças brincando na areia fina das praias ensolaradas, nas calçadas, nos parques, nos carrocéis. Eu choro em dias assim, reflito de olhos fixos nas ondas do mar indo e vindo, almejo quimeras sobre as quais nunca ousarei falar, entrego-me à imaginação mais profícua, namoro estrelas, abraço a lua, embeveço-me vislumbrando os aviões nascendo do espaço ou fluindo do chão para o ar e deixando rastros de medo e ansiedade.

Quando sou surpreendido por esse estado dos dias abandonados pela alegria, pego de umas folhas avulsas de papel e vou rabiscando coisas sem qualquer sentido, por vezes desenhando o desconexo, o inusitado, o complexo, o sombrio, o ingênuo, e me deixo guiar pelas sensações que vão brotando no meu universo mental despretensioso. Então, em absoluto silêncio, esquecendo completamente tudo ao meu redor, procuro ler algum livro retirado da estante, ou folheio um e outro tirando-os e recolocando-os, abanando deles a poeira, rasgando folhas secas neles encontradas, acariciando suas capas, deitando olhadelas nas orelhas, me entediando ou sublinhando frases que, finalmente, chamam minha atenção. Espalho volumes sobre escrivaninhas, mesas, geladeira, mesinha de centro, camas e cadeiras, esqueço e sento sobre alguns e vou deixando a bagunça inesperada para arrumar depois. Ou nunca.

Que fazer em dias assim além de desconcertar o apartamento, derreter-me em lágrimas, tentar voar na leitura, desenhar fantasmas, olhar o mar marulhando, crianças derrubando brinquedos, cães fuçando pelos cantos, gatos vadios buscando viver? Não há muito em que pensar realmente, a surpresa de momentos tão inauditos nos surpreende e nos deixa assim sem rumo, menino perdido no espaço, abelha sem a liderança da rainha, arma sem munição, música sem tom, desafinada, praia deserta de belezas femininas, olhos cegos pelo nada, atleta obeso, vida desatinada. O melhor é deixar o tempo correr o mais rápido, o mais estratosférico possível, colocar as mãos sobre os ouvidos para nada escutar, cerrar a boca e emudecer, fechar os olhos e clamar por outros amanhãs.

Quero somente acenar meu adeus para esses malfadados dias sem inspiração, não os espero de volta jamais em meu cotidiano, anelo que nunca tornem a acontecer, são tristes, melancólicos, estranhos, desmedidos, danosos para quem caminha sob o estigma das letras, do intelecto, são como o bolor das grandes obras esquecidas e empoeiradas nas gavetas. Que dias assim terminem logo, sejam fulminados pela rapidez de minha vontade, desapareçam e se transformem em ternura, se disfarçam de margaridas e lírios. Vão-se papéis rasgados, trapos molhados, cinzas espalhadas, beijos que não foram dados, abraços quase acontecidos, amores desperdiçados, lamentos aniquilados, languidez súbita. Sejam como a noite silenciosa que nossos olhos não veem porque dormem nem nossos corações não sentem porque olvidam.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 23/09/2011
Código do texto: T3237507
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