DIVAGAÇÃO SOBRE O HOMEM, AS ALMAS E OUTRAS COISAS MAIS

Divagações sobre o homem, as almas e outras coisas mais.

Contudo, pensei: meu olhar mudou. Não é a clareza da vista, dos olhos, acostumados a mirar, cansados, mas ainda úteis, com adequadas lentas; é a visão das coisas, a forma de entendimento, o que recebo do mundo, não só nas formas, mas o seu sentido. Por exemplo: uma mulher é uma mulher, mas já não as olho com a voracidade de um cão faminto, esgoelado.

Via o mundo em três dimensões, agora vejo em uma. O transcorrer da vida é isto, as coisas se sintetizam , as dimensões se reduzem, tudo fica linear e o peso das ilusões se equipara ao das desilusões, e você descobre que o bicho homem é o mesmo, em qualquer tempo e qualquer lugar , mudam os costumes, as suas representações e a sua visão do mundo, mas nada o explica, não há como reduzi-lo a uma ótica, não há como defini-lo, digo no cerne, no tutano, a não ser que é irredutível a qualquer explicação.

Sei que os doutores, se me lessem , e não creio que isto aconteça, fechariam a cara, pois isto contradiz tudo o que pensam que sabem, mas não sabem: há santos que iriam para o inferno, se o inferno existisse, e criminosos que iriam para o céu, se o céu existisse – e aqui me lembrei, por associação, do bom ladrão; há juízes mais criminosos que os réus que condenam, e homens riquíssimos que se sentem pobres, atormentados não só pelo medo de perder tudo, mas açoitados pela pobreza de seu ser. E conheci mendigos que se consideravam donos do mundo e o que chamamos de riqueza para eles não tinha o menor sentido, posto que a sua riqueza era outra, o sentimento de liberdade absoluta, que é o de não ver nada nem ninguém que possa obrigá-lo a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa que não seja de sua exclusiva vontade, a não ser a de Deus. Não se sentem fora, mas acima.

Não, não ouso definir, portanto, nem aos outros, nem a mim mesmo, pois quanto mais me aprofundo mais me perco. Conheço a dinâmica de meu inconsciente, isto me ajuda, é claro, me permite correções no comportamento, e até colher bons frutos, mas o mistério do ser está além, num abismo que cada vez mais profundo à medida que nele mais mergulho.

Todos dormem e a cidade está impregnada dos espíritos que aproveitam para vagar, enquanto seus corpos se entregam ao sono. Posso senti-los na brisa da noite, posso divisá-los ao longe nas sombras que passam diante da lua, como aves noturnas irrequietas, sedentas de algo que as impele , mas que não sabem o que é; sei que os espíritos vagam, os encarnados e os desencarnados, na busca dos seus semelhantes, para vivenciarem suas tendências mais profundas e ocultas, percorrendo a noite à busca dos afins, movidos pelas forças inerentes ao magnetismo das afinidades – e aí não há mais vivos ou mortos, mas apenas desejos, luminosos ou negros, tornando a sua busca uma dança de pirilampos.

Livres, mesmo que umas poucas horas, às vezes, para lidar com a essência, que vai muito além da carne, dos corpos, do ego, das limitações do que consideramos a nossa existência, que no fundo nada mais é do que um estranho sofrimento, sujeitos que somos à opressão do nosso semelhante e daqueles que falam em nosso nome. Opressão dos ditames dos outros sobre a nossa verdadeira vontade, decorrência necessária da vida em sociedade. Quanto mais civilizados, mais tristes, pois o preço a pagar pela civilização é cada vez mais alto.

Outro dia, vi, por exemplo, um grande empresário, meu amigo, que conheço há anos, como poderoso e dominador, vivendo a sua vocação de engraxate, esfregando prazerosamente os sapatos de um belo jovem, para cujos olhos mirava amorosamente. Pensei comigo mesmo: “se lhe dissesse que o vi nesta situação tão contrária ao que é no seu agressivo dia adia, passaria a ser meu inimigo.” Pois as pessoas perdoam muitas coisas, mas nunca quem as decifra.

A natureza é sábia e misteriosa em seus desígnios. Guardamos destas escapadas uma ínfima memória , pois elas revelam o que somos de verdade e se pudéssemos saber quão distantes vivemos do que realmente somos , enlouqueceríamos de tristeza. O que é o suicida? Alguém que toma consciência desta distância, e nostálgico do que vive em suas emoções oníricas, resolve partir. Imagina que voa para o sonho libertador ao encontro de si mesmo. Será?

Não fosse eu um velho, quem sabe meio gaga, me sentiria envergonhado de colocar no papel coisas tais como as que abordo neste momento. Mas, lembro, dedico mais tempo ao devaneio do que à chamada realidade. Esta é efêmera, a história nos mostra claramente, e agora, devido ao incremento das comunicações, e ao aparecimento deste novo universo que é a Internet, é mais efêmera ainda,e coisas que nos pareciam inconcebíveis aconteceram diante de nossos olhos. Hitler sonhava com um império de mil anos; durou doze. A União Soviética veio para revolucionar o mundo, desagregou-se no atoleiro dos próprios erros; os Estados Unidos, a mais poderosa Nação do mundo, vem degringolando, vítima da própria prepotência, da exacerbada mania de ditar suas crenças ao mundo, e que na verdade , são uma forma de dominação e de tentativa de prevalência de seus próprios interesses. Mas porque falo nisto, se neste plano tudo é mentira e, principalmente, efêmero? Tão mentira do que dizermos que desejamos sexualmente a nossa mãe e tivemos vontade de matar o nosso próprio pai – mentira, não por não ser verdadeiro, ninguém sabe ao certo, mas por ser inócuo, uma vez que talvez explique, mas não justifique nossas neuroses, que nada mais são do que desculpas que damos a nós mesmos para fugir daquilo que em nós reconhecemos como desagradável, para dizer o mínimo. Somos julgados pelo que fazemos, não importa a explicação. O que desejo frisar é que este julgamento também é uma mentira, por inócuo, pois não somos quem pensamos que somos, temos acesso apenas a uma imagem, não a uma substância. E o mesmo ocorre com quem nos julga. Mergulhar cem ou duzentos metros nas zonas abismais não nos revela o fim do abismo.

Hoje não me importa mais o que meus olhos físicos vêem, mas os olhos da alma. E o que chamamos de realidade já se tornou um sonho, e o que chamam de sonho, tornou-se realidade. Há melhor definição para um louco? Para mim, louca é esta vida que vivemos, estas crenças que temos, estas imposições que sofremos. Loucura é mandar um jovem para a guerra. Ou não? Ou permitir que centenas de milhares de pessoas morram de fome, quando os ávidos por dinheiro fácil queimam nas especulações muito mais do que seria gasto para salvá-las. Ou não?

Tento explicar-me, para que entendam porque me voltei para observar as almas. O sentimento de justiça, que sempre me levou a apoiar as revoluções, e até em crer na revolução como a única saída, desvaneceu-se, porque tive que aprender, até contra a minha vontade, porque a crença na idéia da revolução era quase absoluta, como acabam as revoluções: logo a estranha natureza humana as transforma numa tirania, muitas vezes pior do que a tirania contra a qual se levantaram. O último tsar era uma criança de colo ao lado de Lenine.

Alguém dirá: todo velho, revolucionário na juventude, é um reacionário na velhice. Há verdade nisto, obviamente. Mas nem sempre todo velho é um reacionário, apesar da nostalgia. A razão é outra: sabem porque o diabo é sábio? Porque é velho. O velho aprende a temperar o sonho ilusório com a necessária desilusão na hora de sua aplicação. O velho , mesmo não querendo, se profunda. Mas sendo sadio, não se amargura: apenas sorri, com aquela serenidade de um homem de conhecimento, como dizia o velho bruxo D.Juan, segundo o relato do Castañeda.

Na noite passada, saí por aí, em sonho.

Meu espírito vagou pelos lugares remotos de minha infância – e chorou, porque estes lugares não são mais remotos, estão povoados, poluídos, violentos e violentados e grande parte de sua beleza natural para sempre foi perdida. Os campos nativos estão plantados, e cercados, e construídos. Imagino quantos pirilampos morreram, e rãs, e tatus, gambás e abelhas e demais bichinhos de Deus. Só uma coisa persiste: algumas almas que por ali vagueiam, como antigamente. Mas não são mais as mesmas. São outras almas, choronas, talvez saudosas, como eu. As que conheci, se foram. Para onde? Será que se diluíram na voragem do tempo? Ou foram para outro plano? Ou não são nada, e tudo seja fruto de minha caduquice, uma ilusão? A única certeza que me ficou foi que o nosso mundo morre com a gente.

Daqui a pouco, a lua estará lá no alto, cheia.

Vou pitar o meu cigarro de palha, e ficar olhando. E , tenho certeza, em pouco tempo estarei de novo divagando...até quando? Não me importo mais: o homem que viveu generosamente, amou e compartilhou, se desapega, e lá no fundo, sorri, quando pensa que se livrará deste velho casulo e sairá voando por aí.

Quem sabe não irei ao encontro de todas as pessoas que amei, e já se foram? Gosto de acalentar esta esperança.

Minha mulher chegou na varanda e perguntou: “ de novo falando sozinho?”. Deu-me um beijo na testa.

Olhei-a amoroso, sorrindo e feliz. Sou dono de um tesouro e ele está bem aqui, ao meu lado.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 23/09/2011
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