O bar da casa velha

A casa muito velha avançava impávida para o centro da Rua do Meio bem no cruzamento com a rua que a gente chamava de Morro do Cristóvão. Grossos esteios de aroeira sustentavam-lhe as paredes carcomidas pelos anos. Lembro o espigão de telhas curvas, o alicerce de pedras caseadas era alto por isso as portas que davam direto para o calçamento de paralelepípedos tinham elevados degraus, parte do piso ainda era de assoalho de grossas tábuas corridas, mas a parte onde funcionava o bar havia sofrido uma lamentável reforma e o piso era cimentado. Era alugada a um homem já maduro, porém solteiro, chamado Valdir, possuidor de um coração muito bondoso. Ali ele morava e mantinha o bar. Quando menino, depois que saía da escola, eu trabalhava para esse Valdir. Varria, lavava copos, cumpria outras pequenas tarefas e também atendia aos fregueses.

O bar tinha assíduos freqüentadores que, para a minha concepção de menino, eram pessoas decentes, na maioria, trabalhadores das fábricas de sapatos que naquela época trabalhavam por remessa, sem hora certa de terminarem, por isso seu happy hour, que por aqui ainda não era assim chamado, tinha horários variados. Todos os dias a partir das quatro da tarde eles começavam a chegar, cheios de estórias que minha memória ia registrando. A maioria bebia apenas moderadamente, o suficiente porém, para tornarem-se ainda mais falantes. Uns jogavam bilhar, outros apenas parolavam sobre futebol, mulheres, política, a situação econômica do país. A conversas amenas às vezes convertiam-se em acirradas discussões. Eu, ali, mero espectador, tirava minhas conclusões, conforme permitisse minha insignificante gama de conhecimentos. Mas aquilo me ajudava a crescer e desenvolver meu senso crítico.

Contudo, as melhores lembranças que guardo do Bar da Casa Velha são as dos meus primeiros contatos com o cenário musical brasileiro. Meu patrão tinha uma antiga radiola e sua eclética coleção de discos de vinil era a maior que já vi. O aparelho e os discos ficavam num aposento nos fundos da casa e a tampa do aparelho, que continha o alto-falante, era pendurada ao teto do bar. Eu tinha acesso ao equipamento e minha tarefa preferida era cuidar dos discos. Limpava-os com freqüência. Fascinava-me a produção das capas com fotos dos intérpretes, os cenários e as roupas, não raro, muito extravagantes, mas o que me interessava mesmo era a autoria de cada composição.

Adquiri uma simpatia imensa pelos compositores. Passei a pesquisar de quem realmente eram as canções que os artistas interpretavam e eles passaram a fazer parte daquele meu mundo infantil, povoando minhas fantasias de menino solitário. Eram eles que estavam por trás de toda a emoção que a música podia causar nas pessoas. Devia ser algo maravilhoso poder criar algo que entra para a vida das pessoas, enfeitando-lhes a existência, colorindo-lhes os momentos felizes ou tristes. Passei a acalentar o sonho de um dia poder fazer o mesmo, mas, parafraseando um deles: “menino sonha com coisas que a gente cresce e não vê jamais.” O tempo caiu implacável sobre mim. A dura realidade do homem sufocou a doce aspiração do menino. Por onde anda a poesia daqueles dias? Resiste a nostalgia, emergindo vez ou outra, disfarçada de canção antiga que, às vezes, sem que me aperceba, ponho-me a assobiar baixinho.

A Rua do Meio recebeu favoravelmente a ação do tempo, recebeu o nome de um cidadão ilustre, foi pavimentada, preserva poucas das casas daquela época que, aos poucos, vão dando seu lugar a modernas e bonitas edificações. A casa velha do velho bar, plantada no meio da rua, faz muitos anos que foi demolida. Junto com os escombros, foram retirados os cacos do meu primeiro sonho frustrado.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 23/09/2011
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