Conveniências, afinidades e consequências
Nesses tempos em que novos perfis de relacionamento amoroso (outros gêneros, ideias perpendiculares, díspares idades) se estabelecem, suplantando antigos padrões ou convivendo com eles – e com tudo de positivo e negativo advindo das transformações – é salutar deter instrumentos de defesa e fortalecimento das emoções, decisões, atitudes e relações interpessoais.
Conversava com uma conhecida e ela me descrevia seu namoro com um sujeito muitos anos mais jovem: “Gosto de ler, ele escuta música em tal volume que as nuvens se espantam; sou professora, então trabalho, trabalho, trabalho, ele, bolsista, estuda dois turnos; tomo refresco de limão com beterraba, ele pede rum com coca-cola, gelo e limão; tenho mãe idosa e filho adolescente, ele tem uma banda de rock; ao final da semana há a casa e planos de aula a cuidar, ele toca baixo na noite de sábado e dorme no domingo. Moramos na mesma cidade e quase não nos vemos. Se não houvesse telefone celular e outras tecnologias!...”
A situação assemelhava-se a uma que eu vivera; perguntei se a diferença de idade atrapalhava e na resposta dúbia vi-me novamente: o rapaz pretendia ser pai (algum dia), ela (dali a alguns dias) seria madura o bastante para não se arriscar a gerar criança especial ou enfrentar gravidez complicada. “Há pessoas que dependem de mim”, arrematou, declinando nova e assustadora responsabilidade.
Eis o presente – e a desconfiança quanto ao futuro da relação era óbvia. (Mulheres passam por isso o tempo todo, especialmente uma que se apega a um indivíduo vindo ao mundo enquanto seus seios já crescem. Acreditem, sei como é.).
Conversa vai, conversa vem, percebi que ela se sentia confusa entre o que necessitava e queria. Tal confusão causa ansiedade, indecisão, angústia e, finalmente, um sentimento de impotência que nos enterra – se antes a ansiedade não proporcionar o tipo do impulso desinteligente que nos faz pular o abismo, antes de construir a ponte, por frágil que seja.
Seres racionais decidem e agem baseados em informações – ou, ao menos, assim deveriam fazer. Certo? Então: escolhemos o alimento por necessidades nutricionais (calma, gente, chocolate pode, sim); o colchão para descanso deve ser adequado ao nosso biotipo; o modelo do armário, por mais ‘fashion’ que seja, tem que caber na cozinha e poder conter os utensílios.
Se as necessidades emocionais são tão importantes quantos as domésticas e de saúde – e se identificamos o nível de consumo de energia da geladeira antes de comprá-la – por que não podemos listar os dados psicossociais e circunstanciais de que dispomos, e, a partir do cruzamento deles, criar informações para orientar o processo de decisão e consolidar emoções e comportamentos eficazes, eficientes, efetivos?
Hão de protestar que isso é ‘papo’ de administrador. Acertaram: estudo administração e em muitos aspectos já pratico a profissão. E vou além do ‘papo’: partindo do princípio que necessidades são prementes e vontades são redirecionáveis, as primeiras atendem-se e flexibilizam-se as segundas; conveniências vêm a ser fatores preexistentes, imprescindíveis à relação (por exemplo, o caráter de cada um) e afinidades são construções oportunas (por exemplo, ambos gostarem de pagode).
Enquanto escutava a moça, peguei lápis e papel; com sua autorização e cooperação, escrevi em colunas alternadas suas necessidades e desejos quanto ao namoro, pontuando as plenamente satisfeitas (e em processo) e as vontades negociáveis; linha a linha, afinidades e conveniências foram dispostas em blocos distintos.
O resultado saltou aos olhos: apesar da idade de um e da outra, as circunstâncias indispensáveis ao relacionamento eram quantitativamente mais significativas que as de oportunidade (embora aquelas não substituam estas); o subconjunto das necessidades satisfeitas acompanhou o quadro geral, ficando apenas um pouco abaixo dos desejos cambiáveis. Muito engraçada foi a expressão dela, na face e na voz: “Nunca havia pensado na gente assim...”
A qualquer administrador minimamente competente e ético, o papel de advogado do diabo não cai bem, mas exerce-o assim mesmo: lembrei-lhe que o namorado em nada contribuíra para aquela construção, e, muito provavelmente, teria necessidade e desejos coincidentes ou dissonantes dos dela; além disso, a percepção outra – e masculina – de afinidade e conveniência poderia ser completamente diversa. Ela respondeu não se importar muito com isso, uma vez que se sentia bem mais segura, tanto de si mesma quanto do casal.
Segui matutando se ela realmente havia compreendido o que acontecera ali. Informações são preciosidades, mas não nos obrigam – ou desobrigam – a agir. A qualquer ação, ou falta de, correspondem consequências, e o custo é quase sempre alto, quer pela fragilidade da ponte, quer pela altura do abismo.
Nesses tempos difíceis, de novas relações e antigas necessidades, talvez seja saudável também equipar-se com para-quedas.