Antes do "Meu" Verbo
O meu pai é jornalista e grande cronista e Poeta. Para mim.
Não. Nunca publicou um livro.
Bastava-lhe o cheiro do jornal… Da tinta.
E sua máquina Olivetti Letra.
E sua boemia com whisk sem gelo.
Ele escrevia muito… Sobre tudo.
Sobre Deus e sobre o Diabo. Dependia do dia.
Temperamental e muito inteligente.
Um bom coração. Mas também só quando queria.
E tinha as mãos finas… Os dedos longos…
Eram lindas as mãos de meu pai. E ele lia muito.
Dois, três livros de uma só vez.
Eu não entendia como ele não misturava tudo.
Tinha eu uns quatorze anos…
Quando comecei a tropeçar em versos.
Nos dele… Andava sempre segura.
Para mim… Eram brilhantes!
Nos meus… Sempre tropeçando entre uma bobagem e outra.
Lembro-me quando, nervosa, ia mostrá-lo os meus versos.
Ele… Impacientemente, dizia-me:
- “Isto não está bom. Você anda lendo “fotonovelas”?
Está com “cara” de folhetim… Você pode mais que isso.
Precisas ler mais se você quer escrever algo que tenham a paciência de ler.”
Eu lembro-me que eu chorava…
Da tamanha tristeza, por ele… logo ELE!...
Pisar assim em meus “ensaios”.
Eu sentia muito tudo aquilo que eu escrevia…
E ele… Transformava tudo em nada…
Assim... Tão rapidamente que nem sei explicar.
Igual à fumaça do sempre cigarro no canto da sua boca.
Resolvi continuar a rabiscar… Mas não o mostrava mais.
Resolvi ter um “Caderno de Poesias”…
Como a maioria das mocinhas da minha idade.
Mas neste caderninho… Eu não estava sozinha por lá.
Nele… Estavam comigo o Chaplin, o Vinícius, a Cecília e a Clarice.
Não. Ainda não tinham-me apresentado ao Pessoa.
Ah… Como eu adorava este Caderninho!…
Como eu ainda o amo! ... Está velhinho.
Abro-o tanto… E releio-o sempre.
Eu copiava nele Poemas que nunca poderiam ser meus.
Mas como eu os queria ter escrito…
Na minha cabecinha sonhadora.
Parei. Parei tudo.
Eu não levava jeito mesmo para escrever.
Desisti. Só não do meu Caderninho de Poesias.
Contemplava já os grandes Mestres…
Mas não ousava mais participar.
Aquele espaço era quase “sagrado” para mim.
A minha participação? …
Nos sonhos do desejo de tê-los escrito.
No sentir o que escreviam… E na capa do Caderno.
Eu cobri-o com lindas flores que encontrava em figuras de revistas.
E passei cola Tenaz para dar um brilho merecido.
Mas ficou mesmo lindo o meu Caderninho de sonhar!
Não… Eu não guardei nada que escrevi.
Rasguei muita coisa... Deitei ao lixo.
Também pareço-me com o meu pai nisto.
Não servia para mim. Não mais depois da crítica.
E aquilo incomodava-me.
Eu queria escrever “algo que alguém tivesse a paciência de ler”.
Ele desafiava-me… Sempre dizendo-me não.
E que eu podia mais que aquilo.
E ficava eu imaginando qual seria o caminho do “acertar”.
E ele presenteava-me livros.
E, vez por outra, mostrava-me seus versos.
Havia em mim um grande orgulho das “linhas” de meu pai.
E pensava comigo que, talvez, o problema fora eu ter nascido mulher.
Mas a Clarice e a Cecília viviam a dizer-me que era possível ser Mulher! ... E escrever!
Fiquei adulta…
Agarrada à minha Coleção de Sonhos do meu Caderninho.
Um Caderninho já velhinho… Mas com idéias que transpõem o tempo.
Quando engravidei por duas vezes… Escrevi dois Poemas aos meus filhos.
Sim… Assim que eu soube o sexo das vidas que geravam-se em mim.
Havia sempre em mim uma necessidade da identidade daquela vida que eu gerava. Para que eu pudesse dirigir-me a ele… À ela.
Escrevi e guardei. Ainda os tenho.
Para mim, os meus versos mais singelos e verdadeiros.
Mas não mostrei a ninguém. Nunca.
Apenas se, um dia, conseguir escrever o meu livro.
Mas sei sim… Que ao menos àqueles versos…
As mães… Todas… Terão “paciência para lê-los”.
Depois não mais escrevi nada. Parei novamente.
Vivi. Desvivi. Quase morri.
E quando já depois dos quarenta anos…
Senti a impossibilidade do “guardar-me”.
E escrevi… Muito. E escrevo.
Sem importar-me mais com a “paciência” alheia.
Ao primeiro poema dos quarenta e tal que eu fiz para um grande Amor… Mostrei-o ao meu pai…
Seria a última chance dele. Mas não mais a minha.
Ao qual ele disse-me… Com olhos úmidos e amor de pai:
- “Está muito bom.”
Finalmente… Um dia escrevi algo que ele teve “paciência para ler”.
Precisei viver, sofrer, desenganar-me, amar e não ser amada.
Amar e ser amada…
Andar em “desertos” e pisar descalça em muitas pedras.
Além de ler… Ler. Adoro ler. Sou várias quando leio.
Não sei nem se posso ser Poeta.
Mas posso escrever e SER… E livre!
E como é chato, às vezes, fechar um livro.
É como se acordassem-me do sonho onde eu gostaria de ficar…
Se possível, para sempre.
Então… Por favor… Um pouco de “paciência” com minhas linhas.
Não. Não preciso de aplausos.
Geralmente choro quando escrevo.
Preciso apenas de um pouco de “paciência”.
Sua. E minha... Comigo mesma.
Karla Mello