O lírio apodrecido

Farei, com um pouco de sorte, quarenta e quatro anos em dezembro. É engraçado! Sinto-me jovem. Ainda tenho ilusões quanto ao futuro. Penso que essa faixa etária por que passo agora é um privilégio. Não tenho mais a afoiteza dos vinte, que normalmente estraga os que poderiam ser nossos melhores momentos. Quando se tem vinte costuma-se estragar o paladar comendo a fruta antes que amadureça. Aos quarenta o prazer está em acompanhar o amarelecimento. Nessas alturas a gente já aprendeu que o melhor da festa é mesmo esperar por ela. De mais a mais acho que qualquer homem pode ser mais atraente aos quarenta do que aos vinte. Compare seus conhecimentos, sua segurança, seu patrimônio. O fato é que ter perdido a sofreguidão da juventude me fez um homem melhor.

Penso nessas coisas no meio da tarde enquanto faço plantão no escritório de uma empresa para receber uma notinha. Notinha de gente grande que marca o dia e a hora para você ir receber e quando você chega percebe que o mesmo dia e hora foram marcados com mais outros trinta e o responsável pelo pagamento teve uma situação de emergência e vai se atrasar um pouco. Engraçado como gente pequena custa a pagar, mas te trata bem. Puxa vida! Até lhe oferece um cafezinho. _ Importa-se de voltar na semana que vem? _Claro que não. É outro cafezinho garantido. Gente grande é impessoal. Mas a sala de espera tem poltronas grandes e macias, com ar condicionado.

Como não gosto de frescura saio para fumar um cigarro na calçada. É aí que avisto o Tonho.

Caminhar bambo. As pernas como dois caniços dentro da velha calça jeans. Os cabelos já grisalhos, desgrenhados. Me vê. Atravessa a rua movimentada sem olhar, irritando os motoristas apressados. A coordenação motora comprometida pelo consumo excessivo de etílicos. Olha-me sem palavras. Senta-se do meu lado numa daquelas jardineiras sem flores de fachada de fábrica.

_ Me dá o guimba.

Emociono-me. Ele era mais atraente aos vinte. Roubava-me as namoradas. Tiro o maço da algibeira, ofereço-lhe um dos meus matarratos paraguaios. Passa a língua nos lábios desidratados, risco o isqueiro, ele agradece mostrando os dentes podres num arremedo de sorriso. Exala álcool por todos os poros e é nauseabundo o cheiro de carne humana cozida em muitos dias sem banho debaixo daquela jaqueta de napa ensebada.

_ E aí? Pergunto só para não ficar calado.

_ Quanto tempo faz?

_ Foi em oitenta e quatro. São exatos vinte e cinco anos.

_ Bodas de prata.

_ É. É uma vida.

_ Uma vida?

_ É.

_ Uma vida de vinte e cinco anos é uma vidinha à toa. Não acha?

_ Não. Castro Alves morreu aos vinte e quatro anos. Não são os anos vividos que contam, mas o que você fez desses anos.

_ Tenho feito de minha vida uma grande obra. Dá outro cigarro?

Estendo-lhe o maldito veneno de que também sou escravo. Depois de uma gostosa baforada continua:

_ Na minha casa, obra é sinônimo de merda.

Fica fumando em silêncio segurando o cigarro como quem segura uma chave de fenda, dentro da mão em concha, a brasa se avivando em cada puxada. Volta ao assunto inicial:

_ Depois daquele dia nunca mais nos falamos. Ainda bebe?

- Todos os dias, invariavelmente, uma dose de cachaça no jantar.

- Só isso? Eu não suporto a sobriedade. Ainda tem o disco?

O disco. É verdade naquela noite tudo começou por causa de um disco. Havíamos ouvido um disco brega. O vinil de um cantor negro chamado Tony Damito.

Tínhamos comprado a peça num sebo, só por farra e ouvindo-o, enquanto tomávamos cerveja em sua casa, acabamos gostando. Era de uma pieguice! Canções românticas que suscitavam a saudade de um passado que estranhamente não tínhamos vivido. Naqueles dias eu lia Caminhos Cruzados e, não sei por que diabos, associei a obra de Veríssimo à de Damito, até hoje não consigo lembrar-me de uma sem recordar a outra.

Naquela noite revelamos um ao outro uma absurda paixão por uma mesma mulher. Uma colega de classe. Nunca soube de outra amizade que se rompesse tão repentinamente.

_ Ainda guardo o disco. Eu digo finalmente.

_ Ela nunca soube, não é? Nem eu, nem você se declarou.

_ Tem notícias dela?

_ Tenho. E você?

_ Nunca mais a vi. Talvez a veja e não a conheça mais. Sei lá. Como ela está?

Ergue-se a custo:

_ “Lírio apodrecido tem cheiro pior que o das ervas daninhas.”

Começa a claudicar pela calçada. Afastando-se.

_ Isso é Shakespeare.

_Por ser um bêbado, não tenho necessariamente que ser inculto.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 22/09/2011
Reeditado em 22/09/2011
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