No ônibus da Faculdade de Educação, a educação de cada um
De segunda a sexta feira, nas viagens de ida e volta à Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos – FAFIDAM, um fato causa espanto: algumas pessoas, após desgastante batalha para subir ao ônibus universitário, elaboram curioso ritual, que consiste em marcar – com livros, cadernos, papel, pedra, enfim: coisa concreta qualquer que houver à mão – os lugares de amigos, namorados, parentes e outros companheiros de guerra.
O objetivo, obviamente, é garantir comodidade (e até a proximidade) dos citados colegas, que, como os demais usuários, encontram-se cansados da luta diária e necessitados de simpatia e conforto. Assim, os que não são dignos de igual deferência têm que procurar um lugar ‘vago’, enquanto pastas ou livros ou pedras, ‘sentados’ incólumes, aguardam pacientemente serem rendidos por seus proprietários.
O ritual demonstra de forma inequívoca alguns dos vícios da sociedade contemporânea. Primeiramente, quando da subida ao veículo, o desrespeito a princípios básicos da educação, comprometendo até a integridade física de algum desavisado (uma moça me mostrou o braço machucado, roxo, resultado do empurra-empurra). Em segundo lugar, o materialismo explícito e aviltante, pois seres inanimados ocupando o espaço de seres humanos distorcem o papel do homem no mundo. Finalmente, o autoritarismo e o corporativismo, resquícios medievais do medo e da ignorância, manifestam-se através do discurso simplista (jamais pronunciado em alto e bom som, hipocritamente velado): “Senta quem eu quero e quem me apoia da mesma forma.” Outros são os vícios subjacentes: o egoísmo inerente a quem exerce direito fajuto, baseado em cercear o alheio sem o correspondente exercício do próprio dever, e a troca imoral de favores em benefício de poucos (isso lembra alguma coisa?).
É necessário frisar que os estudantes de nível superior – inclusive os de um campus voltado para o magistério – fazem parte da elite pensante de uma sociedade, e é válido esperar que se comportem como líderes, sabendo fomentar, na coletividade, o que ela tem de melhor, e buscando corrigir o que não condiz com o bem estar social. Mais preocupante ainda é saber que a maioria das pessoas que assim procedem são os futuros educadores das gerações vindouras, alguns, inclusive, já atuantes na área da educação.
Como em qualquer sociedade desigual, as necessidades são extensas e as benesses são escassas: o poder público municipal, fornecedor do serviço, não cumpre funções sequer básicas; o veículo é um só, e os assentos são insuficientes para todos os passageiros. Então, como equacionar o direito da totalidade ao conforto do assento, e como estabelecer o dever de cada um na busca da equidade?
Racional, educado e, mesmo, gentil seria, após determinado percurso (mais ou menos a metade), ceder o lugar ao companheiro em pé, compartilhando com ele da comodidade já desfrutada. No entanto, estabeleceu-se a política da descortesia e – muito pior! – da exclusão de semelhantes, esquecendo-se que pelo advento da cremação, nem cemitério é ‘canto certo’ de ninguém (que o digam os judeus).
Portanto, os que se sentem excluídos e indignados SENTEM-SE CONTRA ESSE ABSURDO!
Morada Nova e Limoeiro no Norte-CE, outubro de 2001.
*Procurava uma receita de bolo de cenoura e encontrei este texto em meus 'alfarrábios' (assim falava meu dileto e absolutamente competente amigo Fernando Monteiro de Paula, servidor da EMATERCE e o melhor coordenador de gente que já conheci).
À época o texto foi publicado no jornal local, mensal; o artigo foi recortado e colado no espaço atrás do assento do motorista.
O absurdo não mais acontece, mas a educação continua indo de encontro a ‘brilhante’ futuro – de causar cegueira, é lógico.
O texto foi editado, a essência é a mesma (desculpem-me se não for crônica) e o bolo de cenoura ficou delicioso.