O ADMIRÁVEL MUNDO DOS MORTOS
Há pessoas que morrem de medo de pessoas mortas. Nunca acreditei em fantasmas. Pelo menos não com o figurino oficial que o imaginário popular lhes confere. Aquela imagem de defunto puxando os pés de quem lhe ficou por devedor ou do espírito vestido de alvíssimo lençol de seda, que arrasta correntes, mora em gavetas ou toca piano para assustar quem quer seja, nunca me cativou. Não boto qualquer fé em fantasmas zombeteiros, ociosos e endiabrados.
Na verdade, a minha relação com os mortos sempre foi muito melhor do que com os vivos. Nunca me perguntaram se acredito na comunicação com os mortos. Mesmo assim, atrevidamente respondo que creio todo o tempo. Mas é um tipo de comunicação unilateral, é um estranho monólogo no qual quem fala é o morto. Por que temer gente morta se há muito mais pessoas interessantes no mundo dos mortos do que no dos vivos? Carlos Drummond de Andrade é tido oficialmente como morto desde 1989, mas como respeitar esse tipo de convenção social quando se é poeta?
Drummond desrespeita todos os acordos internacionais e universais e me fala todo o tempo, me ensina mais coisas do que qualquer vivo ousasse tentar. Drummond me proporciona novas descobertas, novos atalhos para um mundo, que estava escondido todo o tempo, debaixo do meu nariz. Sua voz ecoa durante meu café da manhã e não deixa hálito de coisa morta, de carne abatida por qualquer tempo. Sua imagem chega até mim sempre renovada, poderosa, sem nenhuma ruga, sem qualquer estado de decomposição. O meu Drummond é um eterno ser, imune a qualquer verme. Não voltará ao pó jamais.
E o que dizer de Spinoza, o filósofo? Que poder teve o acúmulo de séculos sobre o seu discurso? Fernando Pessoa, que saiu da vida terrena ainda em meados do século 20, na distante terra lusitana, vive de forma tranqüila e serena, no jardim da minha imaginação. Tenho uma considerável coleção de mortos a habitar o meu mundo. Não consigo imaginar um latifúndio suficientemente grande para abrigá-los. Saltam de todos os países, de todas as épocas, de todas as artes e ciências, para tornar a minha vida algo mais interessante. A companhia desses mortos é mais excitante para mim, por exemplo, que confabular com algum vivíssimo amigo bêbado em uma balada.
Cazuza, o poeta tresloucado e doce, com suas palavras, por muitas noites foi o meu acalanto favorito, a minha canção de ninar. Conheci Cazuza em 2000, dez anos após sua morte física. Ele nasceu para mim há apenas 11 anos, portanto é bem jovem e terá vida longa dentro dos meus delírios. Abraço em meu peito igualmente os escritores Graciliano Ramos, Machado de Assis, Érico Veríssimo, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, o poeta do pincel Pablo Picasso, os poetas da imagem Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman, Federico Fellini, Glauber Rocha, enfim, um exército de finos senhores e senhoras, que fingem dormir o sono eterno para os cidadãos normais. Para mim e para outros loucos, eles se revelam em sua melhor face, sempre com um repertório inédito e linguagens que inundariam uma vida inteira.