O PERDÃO

“A imputação de culpa flagela o perdão.”

(Arcanjo Isabelito Salustiano)

Gleicineide Aparecida, 28, trabalha aqui uma vez por semana e me chama de Seu Moço. É a mais velha de três irmãos, Dorineide, Erival e Emerval. Vieram para a capital depois que a mãe abandonou o pai. Ele bebia muito e sempre. E espancava toda a família de vez em quando.

De vez em quando também ela gosta de ficar me contando suas histórias. Disse que está procurando alguma coisa que a faça perdoar o pai, mas está difícil. Toda vez que se lembra, sempre a muitas risadas - que não sei se são de sarcasmo ou de nervoso, fala compulsivamente. Porque aflita ela fica é na hora que está lembrando. Não passa uma semana sem que deixe cair um copo, um prato ou quebra uma vassoura de tanta força que imprime na varredura. Acho que é de nervoso mesmo. O pai morreu aos 42 anos de cirrose. Parece que ficou um ranço das maldades, do desamor. A gente se vira na vida mas a nódoa fica para sempre. Admitindo-se ou não, manifesta-se em ação ou pensamento falado. Mais dia menos dia. Quisera fosse sublimado em outra transcendência que cura.

- Graças a Deus, seu moço, eu não tenho remorso de falar assim não. Tá vendo essas cicatrizes aqui no meu braço? Pois é, tem mais um monte em outros lugares mas eu não posso mostrar todas, não. É tudo queimadura de cigarro que ele me fez.

Já escutei caso de cabo de enxada quebrado em suas costas, já ouvi do frango que ele comprava e comia as partes boas e deixava apenas as asas e os pés e pescoço para os filhos, já ouvi muita ruindade que o homem fazia.

– Da última, vez, seu moço, eu saí escondida para ir dançar num forró que havia lá na minha cidade e foi quando ele foi atrás de mim e me trouxe pra casa a chicotadas com todo mundo me vendo apanhar no meio da rua. Meu irmão, o Emerval, saiu de casa quando fez 16 anos. Ficou muito forte e disse que ia embora para não bater nele. Se o visse ao menos ameaçar a nossa mãe ou um de nós, ia partir pra pancadaria até acabar com ele. Achou melhor não sujar seu nome na polícia e deu no pé. Foi lá pras bandas de São Paulo. Já lhe contei que de vez em quando ele ficava bonzinho, me dava uma nota de 1 real e meia hora depois vinha pedir de volta para tomar uma cachaça? Eu acho que era! Já nem gastava mais quando isso acontecia, pois sabia que se pedisse de volta e eu não tivesse, ia apanhar. Sabe, seu moço, se esse negócio de má criação gerasse mau caráter, eu acho que ia ser uma bandida.

- Se minha mãe carinhava a gente? Ela nem tinha tempo, seu moço! Trabalhava na roça também. Só quando a gente parava para comer alguma coisa ela dava umas olhadinhas pra gente com cara de carinho. Cuidava direitinho, do jeito dela. No entanto estou ai, trabalhando desde os meus 9 anos e feliz. Feliz, não, alegre e de bem com a vida. Feliz mesmo vai ser no dia que eu casar com o Juninho. Eita homem bão, seu moço!

- Mas voltando ao trabalho, a gente capinava roça o dia inteiro para ganhar trinta e cinco reais por semana. As mulheres mais velhas ganhavam 50. Pouca diferença, né? Mas era uma exploração danada dos donos das fazendas lá pelas minhas bandas. Era não, é até hoje. Essa lei aí que inventaram de assinar a carteira do povo da roça, pelo menos por lá não funciona de jeito nenhum. Voltando no pai, eu me vinguei de uma certa forma, seu moço. Pouco antes de minha mãe decidir mudar pra cá, eu aproveitei um dia em que ele estava desmaiado de tanta cachaça e dei-lhe uma sova de vassoura, que nem ele fazia comigo. Se estivesse vivo ia estar sentido dor até hoje. Desde a época que ele morreu, estou tentando achar um motivo para o perdão, seu moço. Acho que eu ficar falando assim com o senhor, eu vou sentindo um alívio danado aqui dentro e vou perdoando ele aos poucos.

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 21/09/2011
Código do texto: T3232557
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