SER CALANGO
Ser calango, senhores, creiam-me, não é apenas ter uma calda cumprida que cresce indefinidamente quando cortada, tampouco ter quatro patinhas e se mover ligeiramente por entre pedras, paus e muros: é mais, muito mais!
Ser calango é aquele menino, é aquele pobre menino da Ceilândia que muitas e tantas vezes num tem grana nem pra comprar um mísero baré de 50 centavos naquela padaria mais fuleira da cidade. Ser calango é aquela menina, aquela pobre menina de marré-marré deci lá do Gama, de Taguatinga - ou de qualquer cidade marginal de Brasília, ou de qualquer lugar remoto do cerrado, ou mesmo de qualquer lugar do mundo, que, ama e aprecia, sobre todas as coisas, um demorado banho de sol.
Ser calango é isso, é amar sobretudo o sol. É ficar horas e horas sentado sobre uma pedra - ou mesmo estirado no quintal de casa ou na varada - e se deixar ir ficando, assim, fazendo nada, tostando a pele sobre o sol danado da tarde. Ser calango é amar, sobretudo, o sol catingueiro do cerrado; esse sol catingueiro que arde nos meses de julho, agosto e setembro e enche de mormaço as casas e faz todo mundo ficar doido pra tomar um banho alegre de mangueira. Ser calango é isso, é amar a estiagem e a seca do cerrado.
Ser calango é assim, é ficar estirado no chão do quintal e ficar sentindo o sol catingueiro bater na pele que nem chicotada violenta no lombo do boi. É sentir que o sol tá batendo na derme, entrando por todos os poros, aquecendo até os ossos mais entranhados da alma. Ser calango é, além do mais, sentir-se profundamente abençoado por tudo isso.
Ser calango é aquele sujeito, é aquele pobre sujeito que, por não ter acesso aos circuitos de lazer oferecidos pela cidade, se envereda pelas trilhas alegres do cerrado e lá vai fazendo sem pressa nenhuma de nada as suas longuíssimas tardes, apreciando o declinar do sol no horizonte, o desabrochar luminoso dos ipês amarelos – a trepidação das árvores – mangueiras e guapuruvus - sob o vento vago, o som diluído dos carros ao longe, a melodia esperta e divina dos passarinhos.
Ser calango é amar sobremaneira passarinhos e borboletas. Principalmente as borboletas amarelas. Ser calango é muitas vezes saber atinar o nome do passarinho só pelo som do seu canto. “Aquele histérico e estridente é do joão-de-barro, aquele assim é do bentivi e aquele melodioso é do sabiá-laranjeira”, assim diz o calango quando escuta passarinho.
Ser calango é amar o sol e a chuva e não reclamar nem de um nem do outro. É aceitar o sol mais violento à tempestade mais torrencial Ser calango é aceitar, com a resignação abençoada dos santos, as confluências e as intempéries mais aterradoras da natureza, e considerar, lá no fundo de si considerar que essa nossa vida de cada dia, em cada pequeno e imperceptível segundo, só pode mesmo ser um verdadeiro milagre.
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