Pititinha

A primeira coisa de que se lembrou ao abrir os olhos, foi da cara tostada do leiteiro sob a aba do chapéu de palha, o dente de ouro saliente, a voz gutural dando-lhe a desculpa:

_Cê não me leva a mal, Tadeu. Sabe como é. Cê é novo por aqui, tá desempregado, inda por cima mora de aluguéis. Tenho perdido muito por confiar nas pessoas. Cê inté que me parece um home bão, direito, bem quisto na vizinhança. Mas é que não posso memo, só. Teno o dinheiro forneço o leite cum satisfação pra sua menininha, tadinha. O bichinho num tem curpa.Quando qué mamá, qué memo, faz dó, mas num posso memo ...

E a lenga-lenga ia por ai a fora. Ele até que tinha rasão, não sabia mesmo como iria pagar.

Sentou-se na cama devagar para não acordar a mulher que ressonava levemente. Tão linda e tão jovem e já dava mostras de cansaço e amargura. O rosto miúdo já meio encovado. Perdera peso por causa da necessidade e da insegurança. No berço mal forrado dormia inocentemente a Pititinha. Um fio de luz do sol, proveniente de uma fresta no telhado de amianto, desenhava um pequeno circulo brilhante em seus cabelos dourados.

Secou as lágrimas com as costas da mão. Ergueu-se. Precisava enfrentar a sua realidade. Daí a poucos minutos a Pititinha acordaria pedindo leite...

Saiu para a rua com a mesma ponta de esperança de todas as manhãs, esperança que ia morrendo no decorrer das horas. Quando chegava em casa à tarde, extenuado pela busca infrutífera, trazia para a mulher e a filha só frustração e desesperança.

Pedreiro de mão cheia. Foi assim que o Juca lhe falara quando o convencera a deixar o Norte de Minas. O Juca tinha uma Kombi e fazia fretes. Lá em Nova serrana você não fica parado nem um dia. Lá é assim. Por todo lado que você olha é construção. Não falta emprego pra ninguém... Vendera o pouco que possuía e pagou a viagem de Kombi. Com o que sobrou pagou um mês de aluguel, comprou alguns móveis num topa-tudo, e sobreviveu até ali. Mas emprego mesmo não conseguiu nenhum.

Depois de duas horas de procura sem sucesso, parou exausto numa mercearia. Sentou-se desconsolado numa pilha de tijolos. A mercearia ficava num prédio em construção. O primeiro andar estava concluído e aqueles tijolos eram, com certeza, destinados à construção do segundo andar.

Uma luz brilhou de repente em seu coração. Procurou o dono do estabelecimento, era um senhor baixo e gordo, com um largo bigode.

_Pois não, meu jovem.

_Este imóvel é do senhor?

_Sim. É meu.

_Vai começar já a construção do segundo andar?

_Não. Devo demorar ainda um pouco.

_Então com certeza tenciona guardar estes tijolos.

_Não tinha pensado nisso.

_Mas há de convir que eles ficarão melhor lá em cima.

O homem fingindo pressa em encerrar a conversa disse não estar interessado e virou as costas. Tadeu insistiu já meio desesperado:

_Quanto me dá para eu guardar os tijolos?

_Te dou cinco reais. Respondeu sem olhar para o outro.

_Mas, senhor. É muito pouco.

_É pegar ou largar.

Tadeu saiu desconsolado. Mirou a pilha enorme de tijolos. Deviam ser uns três mil. Mediu a escada de cimento e concluiu que era um desaforo.

Continuou andando como quem não tem aonde ir. Um nó na garganta e as lágrimas teimosas querendo aflorar. Naquela época, um litro de leite custava cinqüenta centavos. Pesou a coisa toda com as seguintes medidas: seria guardar três mil tijolos para receber dez litros de leite. Se conseguisse levar seis tijolos por vez subiria a escada quinhentas vezes e a pititinha teria leite por dez dias.

Voltou correndo e pôs o peito no serviço. Trabalhou obstinadamente, sem descanso. Para vencer a fadiga ia contando as vezes em que subia a escada.A cada cinqüenta subidas ele dizia vitorioso: _ um litro de leite para minha Pititinha.

Quando o relógio da matriz de São Sebastião batia dezoito horas ele subia a escada com os últimos seis tijolos. Sentou-se no patamar dominado pelas cãibras. O dono da mercearia vinha subindo pesadamente com uma nota de vinte reais na mão, seguido de um outro senhor muito simpático e elegantemente vestido:

_Vou te pagar vinte pelo serviço. Você valeu cada centavo. O que faz exatamente?

_Sou pedreiro, mas estou desempregado.

_O Seo Leônidas vai começar uma obra grande e precisa de um pedreiro. Se quiser, o emprego é seu.

Tadeu sorriu de verdade pela primeira vez em trinta dias. Comprou leite e foi correndo pra casa, ver a Pititinha.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 21/09/2011
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