Ressaca

O Menino chora de novo. O danadinho tem força no peito, Virgem Maria! Cinco horas da manhã e o bichinho querendo peito. Morre de dó de Mariinha, coitada! Tão moça e já com a vida desgraçada. Duas criaturinhas para tomar conta. A Menina nem bem tinha feito dois anos e vai a desmiolada pegar barriga de novo, e solteira. Cria sem pai, com o perdão da má palavra: que nem bicho. Falta de aviso não foi. A velha ainda a ajuda a cuidar, mas com ele a coisa é diferente. Não pode aceitar a falta de compostura da filha. Acha que se a ajudar será o mesmo que estar consentindo com o que faz. Não consegue se referir aos netos pelos seus nomes. Para ele são a Menina e o Menino.

O galo cantou, mal acomodado no galinheiro exíguo, como ele no colchão de espuma jogado no cômodo apertado. A velha o tinha enxotado do quarto durante o resguardo da filha. Tinha acomodado a ninhada na cama do casal. Amor de mãe, sempre batendo palmas para as burradas das crias. Tanto fizera que Tereza, a outra filha, antes mais ajuizada um pouco, também já se amancebou com um sujeito esquisito que volta e meia envolve-se em problemas com a polícia, diz que vive de negócios não se sabe de que tipo.

Levantou-se. A cabeça latejando, engulhos resultantes da pinga barata consumida na véspera. Enrolou o colchão com o travesseiro e os forros tudo junto, jogou em cima do móvel escangalhado. Abriu a porta de tábuas de andaime, cascorenta de massa de cimento, aproveitadas de uma construção onde trabalhara de servente. Pelo menos agora não tinha mais o problema do aluguel para enfrentar todo mês. Aqui tem essa vantagem. O povo ajuda. Difícil é só conseguir um lote de terreno, mas até isso a gente consegue, depois que transfere o título de eleitor tem sempre uma alma caridosa para fazer doação de um pedaço. Quando chegou do Norte teve que morar de aluguel por muito tempo, às vezes faltava dinheiro para o pagamento e tinham que se mudar enxotados para barracos cada vez piores e mais caros.

Saiu para o terreiro. Acendeu o fogo aproveitando uns restos de caixotes que juntara na véspera, pôs a água a ferver para o café. O estômago ruim mesmo. Vômitos secos, de barriga vazia. Procurou pela garrafa, não havia mais nada. Diabo! Enquanto não bebesse outra não teria alívio. Pegara isso agora: à tardinha tinha necessidade de tomar umas cachaças para aliviar o coração magoado, de manhã tinha que tomar pelo menos uma para pôr o estômago de novo no lugar. Eta vício maldito!

O Planalto começava a acordar. Daí a pouco as ruas virariam um formigueiro. As pessoas andando apressadas, misturando-se às bicicletas, motocicletas, carros e ônibus num rebuliço danado, mães arrastando filhos pequenos pela mão, sempre os deixam aos cuidados de outras pessoas para atenderem ao apito das fábricas de calçados, crianças em uniformes escolares num frejo medonho. É bonito de ver a Rodovia Municipal Carmem Duarte fervilhar de gente naquele ritmo alucinado que ele não pode mais acompanhar. Às vezes senta-se na esquina da Carmem Duarte com a Amazonas e fica assistindo ao movimento dos transeuntes, observa tristemente que as fábricas só absorvem as pessoas jovens, para ele não havia espaço no mundo agitado daquela gente. A confusão que começa às seis horas dura apenas uma hora. De repente tudo silencia novamente, é o sinal de que as pessoas já terão chegado cada qual ao seu destino onde haverão de enterrar mais um dia de suas vidas.

O cheiro do café fumegante recende longe. Toma um gole, o organismo repugna. O menino agora resmunga manso, manhoso, inocente e puro, sem saber o que o espera. Bota o roto chapéu de lebre, companheiro dos velhos tempos do cafezal lá distante, ascende o palheiro, deixa o barraco. Precisa imediatamente consertar aquele estômago.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 21/09/2011
Código do texto: T3231805
Classificação de conteúdo: seguro