5 de Agosto

Nunca tinha sido um cara normal na vida dele. Sempre contra tudo e contra todos, a favor apenas da desordem e dos que não querem nem saber. Achava os punks, os anarquistas, os skinheads, todo tipo de faladorzinho revolucionário um bando de hipócritas homossexuais que usavam uma ideologia importada como desculpa para as suas fantasias sado masoquistas gays. Afinal, sair na rua para caçar outro macho e ficar se atracando é coisa de viado. Nunca disse isso a nenhum deles, não queria fazer parte desse grande clube urbano de swing S&M, nem apanhar de graça, mesmo porque sua força nunca esteve nos seus músculos, mas sim nas suas ideias. Revolução, para ele, não era defender um grupo ou uma classe social em detrimento de outro ou outra. Onde estavam aqueles que lutam pelo seu povo, pela autonomia e a liberdade (ainda que muitas vezes ilusória) de escolha? Nunca tinha visto isso, nascera no Brasil.

Mas os grupos denominados “terroristas” muçulmanos o fascinavam. Tudo era puro caos e agressão sem precedentes, nunca havia visto uma ideologia dominante ser combatida com tanta vontade, gana, raça e eficiência. Admirava muito o povo iraquiano e afegão, que com mãos vazias e algumas armas contrabandeadas faziam frente à maior potência bélica do mundo, humilhando-os na frente do mundo todo assim como os vietnamitas o fizeram antes apenas com foices de arroz. Sem Rambo para ganhar a guerra sozinho, sem perspectivas de vencer e sem James Bond para se infiltrar, aquele país nojento se afogava com as próprias fezes e gastos militares. Tipo o gás mostarda do Saddam, matando e corroendo os Estados Unidos de dentro para fora. O grande ditador que passou de salvador a anticristo em menos tempo que qualquer outro homem havia conseguido finalmente mandara sua derradeira maldição made in além túmulo.

Achava engraçadas as histórias de onde as pessoas estavam naquele fatídico 11 de Setembro. Sempre dizia em tom orgulhoso e transgressor (seu tom mais comum): “eu tava transando com a TV ligada quando aconteceu. Gozei assim que a segunda torre foi atingida”. Chocava a todos ao seu redor e perdia amigos conservadores a cada vez que abria a boca para expor sua opinião, sempre incendiária e extremista. Lembra que uma das poucas vezes em que ficou tão chocado quanto a patuléia conservadora foi quando o virgem retardado entrou na escola e abriu fogo contra crianças.

- Crianças, porra! Que culpa elas tem do estado miserável e excludente em que a sociedade se encontra? O pior pecado delas é ficarem sentadas em frente à TV enquanto as corporações estupram sua pureza com o consumismo desenfreado. E ainda não foi macho de assumir o próprio ato e se matou. Ah, como eu queria saber o que ia acontecer com um filho da puta desses na prisão. Uma prisão de leprosos estupradores seria pouco.

Tava errado. Tava tudo errado. Para ele, quem não tinha a mesma visão estruturalmente cética que ele, é porque não conseguia enxergar a realidade do mundo do jeito que ela é. É porque não ouvia os gritos sufocados lançados da periferia, do gueto, de debaixo das pontes, da cracolândia, do centrão. Sabia que a cracolândia chocava tanto porque a maioria das pessoas viam um espelho macabro onde a vontade de escapar da realidade de merda que elas levam se multiplicava por mil. Se multiplicava e aproximava seres humanos da sua verdadeira natureza: animais, vivendo para sobreviver e conseguir a próxima pedra. Afinal, o que é o crack se não a fuga mais eficiente e barata que existe? Uma novela das oito, um jogo de futebol, uma latinha de cerveja ou um cigarro concentrado em milímetros, com efeito avassalador e vício imediato. Misture isso com a ganância inerente aos animais de nossa espécie e o descaso do dito “poder” para com os que não vivem como nos seriados da Globo. Resultado: zumbis.

Zumbis sujos e inconseqüentes, espalhando-se pela cidade e aterrorizando os “cidadãos de bem”: pedófilos, adúlteros e sonegadores com casca de empresário bem sucedido. Enchem a boca para dizer: tem que descer a porrada, matar todos. Bravo! E se alguém decidisse sair de casa com uma motosserra e cortar todos os engravatadinhos em pedaços? E se seus tenebrosos pecados ocultos fossem descobertos e você estivesse marcado para morrer? Pena de morte não parece tão interessante agora, não?

E se esses doentes viciados se organizarem (ou fossem liderados) e tomarem as rédeas da cidade? E se um maluco usa esses pobres coitados como massa de manobra prometendo um estoque gigantesco de pedras para quem o ajudar na empreitada? Ah, ele se deliciava com os arrepios que esse pensamento lhe dava. Tratar os homens ditos bons, bem sucedidos como o câncer da sociedade e propor o fim deles, ah, que ideia.

Ele sabia que era diferente, que pertencia a uma linhagem única de pessoas. As pessoas que mudavam a história. O assassino de Franz Ferdinand, o assassino de JF Kennedy, o assassino de John Lennon, de Getúlio Vargas e de PC Farias. Ele sabia que o assassinato era um ato sujo e inglório quando praticado por homens fardados, justificando-se na cor da pele do outro. Era também quando praticado por marionetes de uniforme comandadas por um palhaço como Gary Kasparov controlava seus peões. Mas não, ele não acreditava em nada, por isso era o seu próprio Deus. Ele decidira quem morreria e quem viveria nos corredores e salas de reunião do poder.

Até hoje ninguém sabe como ele fez, mas os jornais do Maranhão chamaram de “Maior tragédia da história do Brasil”. Sarney, Collor, Barbalho, todos os remanescentes da ditadura conservadora e dos partidos reacionários de direita. Mortos. Uma cruzada sangrenta e sagrada que culminou com a morte de uma seleta lista de políticos, figuras públicas, jornalistas, líderes sindicais corruptos. Ouvem-se histórias que seus aliados não sentiam fome, frio, nem dor. Comandou um exército invisível. Todos os homens invisíveis aos olhos do Estado mostraram sua face a Ele de uma vez. O problema é que a face destes homens foi a face da morte para milhares. E os homens “comuns”, apesar de também desejarem aquelas mortes, condenaram a violência com que os atos aconteceram, liderados por José Luiz Datena, William Bonner, Fátima Bernardes e a família Marinho. Não se fez piada deste dia e não se comentou sem lamentar. As comemorações e levantes vindas da periferia foram rapidamente sufocadas com ainda mais violência pela Polícia Militar e o monopólio da força estatal. O exército, braço do Estado, virou novamente o sagrado guardião da ordem do país, e com apoio do Quarto Poder (o poder das canetas, câmeras e microfones), subiu ao poder novamente. A neoditadura inaugurou uma nova fase negra de sufocamento de todo tipo de direito e, do seu refúgio nas Ilhas Malvinas, Justo da Silva via pela televisão de sinal pirata que conseguira tudo que estava acontecendo. Lamentava, ao invés de comemorar o sexto aniversário do que foi batizado de “maior ato terrorista em território brasileiro”. Era também o dia de seu aniversário. E enquanto as velas no bolo indicavam sua idade, ele aceitava a derrota e tomara o último copo do estoque de Velho Barreiro que havia conseguido trazer de sua amada terra natal. Três anos depois, com ajuda do Photoshop e dos efeitos especiais de Hollywood, o governo reacionário da neoditadura anunciaria a captura e execução de Justo. Fotos de um rosto deformado e carbonizado foram divulgadas como anúncio de liquidação, enquanto a dúvida ainda pairava sobre as cabeças dos que deviam.

Amuados e receosos, dentro de seus carros blindados, não viveriam mais. Rezavam para que o sentimento de Justo não revivesse apesar da repressão violenta praticada contra quem sequer citasse seu nome e seus ideais. O que Justo não viveu para ver foi a cara desesperada dos Ministros ao verem uma pichação gigantesca em todos os prédios de Brasília, que diziam: “LEMBREM-SE DE 5 DE AGOSTO. JUSTO DA SILVA VIVE!”. O aniversário de Justo era também o dia dos chamados “atentados” e havia sido removido do calendário. Agosto iria até o dia 32 para os brasileiros, e o dia 4 precedia o dia 6. Até agora. Até agora.

Diego Biagi
Enviado por Diego Biagi em 20/09/2011
Código do texto: T3231106
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.