CROCANTE ERA O CASCALHO
Aquela senhora fazia cucas deliciosas.Seguindo a tradição,após recheá-las com banana,uva ,ou frutas cristalizadas,as encobria com uma generosa camada de farofa doce condimentada de muita canela ou chocolate em pó.
Assadas em fornalha,transformavam-se em irresistíveis retângulos altamente calóricos,ainda que muito saborosos.
Ao dono da casa,que não apreciava os recheios tradicionais,preparava-se uma fôrma especial fartamente recheada de fatias de goiabada e a costumeira farofa.
Tardinha de um sábado qualquer,num tempo longínquo.O ar era quente e o riacho,ao fundo do quintal,trazia as margens salpicadas de pescadores mirins.
A farra corria à solta na beira do rio e no terreiro, rescendendo às cucas assadas ,outro pescador mirim preparava-se para integrar-se à festa ribeirinha.
Uma voz lhe ordena:
-Retire as cucas do forno antes de sair para a pescaria.
Ofegante ele percorre o trecho compreendido entre a casa do forno e a cozinha de sua casa.Uma forma à cada vez(eram muito quentes) e já contavam-se três, as idas e vindas.
A última a ser transportada seria aquela preparada com esmero para agradar ao dono da casa.O desejo de acabar logo a tarefa, aliado à euforia de saber-se livre para “reinar” à beira do rio,põe o menino em disparada carregando o fardo que lhe fora destinado.
Seguido à risca um conhecido chavão que diz:”A pressa é inimiga da perfeição” , deu-se a desgraça:
Uma tropeçada,um tombo,e lá se vai a última das cucas de encontro ao fino cascalho do terreiro.
Um par de olhos apavorados, passeia na paisagem.Ninguém o observa.Num ímpeto, surge-lhe a única solução viável para a catástrofe. O primeiro galho de um arbusto que aparece à sua frente funciona como miniatura de vassoura .Nas fatias de goiabada aninham-se montinhos de pedriscos miúdos.Confundem-se à farofa de chocolate.Nervoso o desastrado varre a cuca cheirosa e quente.Há resistência...Relutantes, grande parte das pedrinhas permanecem agarradas ao doce. Varre daqui,varre dali e...Seja lá o que Deus quiser.Uma eriçada na espêssa camada de farofa e o cascalho vai confundindo-se à cobertura.Já na cozinha, encobre a forma acidentada com uma toalhinha branca.
Ufa!...Missão cumprida,a liberdade abre-lhe as asas.
Chega a noite.Acabrunhada arde a chama do lampião à querosene.Ao redor da mesa rola animada conversa.Olhares se cruzam amistosos,alegres...encontram-se ao olhar culposo daquele que omitiu a verdade.
Em pensamentos,sente-se um trapaceiro.
Chega o momento de provar da delícia assada em fornalha.Uma generosa fatia é servida ao senhor de aparência austera (só aparência),acompanhada de uma xícara de café.
Na cabeceira da mesa é ele observado em seus mínimos gestos.Uma mordida na fatia de cuca,um mastigar cadenciado,vagaroso,um “trec trec” entre os dentes,uma ligeira pausa,um olhar esbugalhado...Mais um “trec-trec”,um revirar de olhos e o menino treme na base (nos dias de hoje diria-se:”Ih!...Sujô”)
No entanto,a reação do “austero” não poderia ser mais inusitada:
_Hum! Que delícia!...Crocante,crocante! Profere os elogios,falando de boca cheia.
E dirigindo-se à doceira pergunta-lhe:
_O que puseste nesta farofa que a deixou assim tão crocante!?...Tão deliciosa!? Faz um ligeiro gesto com o dedo indicador sobreposto ao polegar formando um orifício entre ambos,e como que delineando os lábios solta os dedos no ar afirmando a satisfação do paladar.
_O mesmo de sempre...Nada de especial,responde-lhe esta.
Aliviado, o “até então preocupado”,aproveita para empanturrar-se calmamente sob frouxa luz do lampião.
Decorridos muitos anos,o episódio sido revelado em suas minúcias,nas rodas de chimarrão e prosa o assunto vinha sempre à baila provocando boas gargalhadas.
O “austero” que contava agora com mais de 80 anos,não admitia o fato de ter sido ludibriado e, entre um chimarrão e outro,fitava aquele que fora o protagonista da história e num sorriso complacente dizia aos demais:
Ele mente!...Ele mente...