O buraco
Estranhamente, e sem uma razão plausível, uma coisa ou fato aparentemente corriqueiro e insignificante, aloja-se em nossa memória, aconchega-se como um gato velho e apático, fica dormitando ali por anos a fio, imperceptível, oscila dolentemente entre a mente e o coração, numa modorra descompromissada, até que numa ocasião ou outra, no meio de uma conversa ou de um devaneio qualquer, vem à tona sem nenhum propósito. Reminiscência boba. Inútil e despretensiosa como o gato preguiçoso.
Seo Antônio, viveu seus últimos anos, sob nossos cuidados, segundo ele, se bem que aos oitenta e cinco anos a memória de um homem pode lhe pregar algumas peças, era carreiro nos idos saudosos de sua mocidade, com seu carro com tração nas quatro parelhas de bois, fazia a conecção Estação/Cercado-Cercado/Estação. De trem Chegavam as provisões, também de trem escoavam-se os produtos da terra, como a estação distava cerca de duas léguas da Freguesia do Cercado , fazer a intermediação de carro-de-boi era um excelente ramo de negócios.
Contava-me essas coisas, no decorrer de nossas idas ao Hospital São João de Deus em Divinópolis, quando fraturou o fêmur, na fila de espera da ortopedia onde às vezes acontecia de aguardarmos o dia todo. Nessas ocasiões em que, vez ou outra, ocorria-lhe breve acesso de caduquice, esquecia de onde estava, pedia um trago de cachaça, bebida que apreciou com sensata moderação a vida inteira, depois recuperava a lucidez e lembrava-se de fatos ocorridos a décadas, com surpreendente exatidão.
Contou-me de uma feita em que foram, ele e seu candeeiro, surpreendidos pela noite, ainda muito longe de casa, pediram pouso numa fazenda, onde puderam proteger a carga e soltar a boiada num piquete de capim provisório próximo da sede. O fazendeiro os convidou a entrar, mandou servir-lhes água morna para lavarem os pés, depois serviu-lhes uma sopa quente, revigorante.
Seo Antônio descrevia detalhadamente uma casa grande de assoalho de tábuas, uma família educada de moças lindas e robustas. Uma gente saudável e bem alimentada, com excelentes hábitos. Bastante conhecedor da população, não sei porque omitia os nomes. Contudo, o que descreveu com mais ênfase, foi o buraco do assoalho no centro da ampla cozinha, como a única coisa destoante:
_ Quando entramos eu reparei naquele buraco no meio da cozinha. Era um grande buraco. Parece que haviam acendido ali uma fogueira em noite de frio e deixado que o fogo atingisse as tábuas do assoalho. Lavamos os pés, tomamos um trago de cachaça e a sopa de galinha com farinha de milho. E eu reparando naquele buraco, grande mesmo. Na hora de deitar o fazendeiro ainda mandou servir-nos um chá. Pôs-nos para dormir num quarto grande, forrado de esteira de bambu, mobiliado com apenas dois catres e uma mesa tosca, tudo muito limpo, cheirando a patchuli. Pela manhã café com leite e bolo de fubá... Pude observar melhor o buraco. Enorme. Podia-se ver através dele galinhas, patos e cabras ainda abrigados no porão. Despedimo-nos depois de agradecer aquele bom homem, os bois já estavam ali mesmo no curral à porta da sala, chegamos em casa dia alto...
_ E o buraco, Seo Antônio?
Eu achava que o buraco, pela atenção que recebeu na descrição, haveria de protagonizar um grande acontecimento.
_ Pois é, sô. Tinha mesmo aquele buraco lá. Bem no meio da cozinha.
_ Mas o que é que aconteceu com o buraco?
_ O buraco ficou lá, uai. No meio da cozinha.
_ Mas o que é que o buraco tem a ver com esta estória, Seo Antônio?
_ Uai, Carlinhos. Eu é que sei? O que haveria de ter? Eu sei lá, sô. Tinha lá um buraco e pronto.
_ Mas nada aconteceu com o buraco?
_ Como é que eu vou saber? Nunca mais voltei àquela casa...
Até hoje não entendo o sentido daquele buraco. O certo é que ele deixou uma funda impressão em Seo Antônio. Ficou ali, na memória, inútil e despretensioso, como o velho gato na almofada.
Aliás, nem sei por que lembrei disso agora.