O SÉTIMO LADO DO CUBO
Enquanto você dorme, eu descanso. Olhando seu rosto triangular sobre meu peito, sem as rugas da vigília, o sexo pássaro em repouso entre as dobras dos lençóis, minhas mãos sobre o leve e compassado palpitar do seu coração, saboreio um precário e indelével sossego em todas as coisas.
Quando você, pleno silêncio, pleno esquecimento do desejo, das palavras, dos múltiplos tempos, das cordas do insaciável violino, das paisagens cobertas de neve, eu repouso das falas dos elfos, do automóvel dourado de Daniel a subir a serra em busca do seu refúgio lá, onde têm início os caminhos do Sertão. Repouso, em tais intervalos, dos pensamentos que nenhum de vocês seria capaz de adivinhar. E nasce em mim o gosto quase real da vigília, dessa lucidez quase plenamente possível, quase presença em mim de mim mesma, ternura como musgo, todas as coisas quase molhadas da água original, o quase esquecimento de todo o quase sido, a quase perda consentida de todo o jamais vindouro, a quase renúncia a tudo o que tenha nome não sabido, ou que poderia tê-lo, o quase não pensamento, o quase estar em todos os não lugares, o quase nada-tudo do Tao.
Quando assim em você, quase alga na água, quase raiz na terra, quase nenhuma lembrança do esforço das asas no voo, nem das chamas devorando árvores, nem da neve cobrindo o dia da mulher com quem você, certamente, está a sonhar neste momento, nem do coração telepático daquele que me sabe e me sente com você agora na cama deste quarto de hotel, nem do meu coração telepático que o sabe, a ele, Daniel, na cama com a mulher imersa em seu desespero sem nome, saboreio esta espécie de descanso sobre o sétimo lado do cubo, enquanto você, Rubem, permanece na terceira margem do rio. Assim o mundo, quase começando de novo.
Republicação na manhã de 20 de setembro de 2011.