ESPELHO MEU ESSE SOU EU?
Por Carlos Sena
Por Carlos Sena
Um belo dia você acorda pra vida e já são seis horas. O crepúsculo do existir se prepara para a noite ser – anoitecer em pleno dia pela certeza de que pode haver em nós a sensação de não termos feito “o dever de casa” que a vida nos solicitou. De repente tudo parece ontem em função dos amigos que estão grisalhos, dos filhos que já são pais dos nossos netos. De repente nos pegamos lembrando muita coisa que um dia fizemos. Não menos de repente a gente nota que alguns amigos começam a mudar de planos existenciais. Alguns amigos somem, outros reaparecem cheios de histórias pra contar. De repente o espelho! Ele, aquele com quem demoramos a nos entender, mas que um dia nos rendemos às suas garras cruéis. Diante dele a gente se reveza entre o que somos por fora e o que somos por dentro. Se por fora ele nos delata por dentro nos ignora. Compete-nos, no meio desse mistério existencial, aprender a nos relacionar com essas duas realidades aparentemente contraditórias, mas idiossincraticamente convergentes.
O tempo se nos apresenta como tempero meio vencido das nossas vivências – ora vitórias, ora vidências. Ora perdendo ora ganhando. Ora orando, ora arando ilusões tecidas no passado de ilusões adormecidas. Nesse leva e traz das ondas da vida que anoitece, a gente se reconstitui para enfrentar o futuro limitado que ela nos mostra, literalmente, na cara. Afora o rosto, o gosto da vida se passa por dentro em cada minuto vivido como se ultimo fosse. A gente passa a querer achar amargo no doce e quando o doce fica pedrado, preferimos entender que é cocada. E quando tudo dentro da nossa noite parece ser rápido demais, logo inventamos minutos sobressalentes para espichar a nossa felicidade.
Descobrir que há tempo fértil em nossos outonos não é ajudar criar netos. Não é arrumar emprego (mesmo aposentado) pra ajudar filho mal sucedido. Tempo fértil é o tempo feito por cada retirante da seca existencial para nutrir de água a aridez da vida que passou e deixou dolorosas pegadas. Inventaram-se novas idades – boa idade, terceira idade. Invenção esquisita quando a vida não pede pra ser vivida em fração. Ela, a vida, segue em si mesma como um trem que, pelo mesmo trilho conduz vagões diferentes com pessoas diferentes, mas pelo mesmo caminho... Difícil é conviver com um sentido interior de vida em contradição com aquele que inventaram pra nos segregar. Ah, anoiteceres, por que não libertas os homens dos seus devaneios ensandecidos de vida breve! Breve é o tempo que nos transforma e nos transtorna pela pouca condição que nos dá para conviver com o espelho nosso de cada dia, esquecendo que a alma não é vadia.
De repente já são seis horas. De repente o dever de casa pode não ter sido feito. Lentamente a gente vai vivendo com o prazo de validade vencido. Lentamente a gente vai descobrindo que Deus nos deu GARANTIA ESTENDIDA e nós nem sabíamos disto.