LUZ! QUERO LUZ!
Não bastasse a chuva de granito, a casa molhada, a árvore que caiu na rua, o trânsito completamente congestionado, tinha de estourar o gerador do quarteirão, num quase show de fogos de artifício, e acabar a luz logo na hora que a inspiração chegou.
Tentei resgatar algumas folhas soltas e canetas e improvisar à luz de velas. Mas e as velas? Por que guardamos as velas?
Gostaria de escrever sobre a senhora que se sentou ao meu lado no ônibus e, depois de desfilar um rosário de vivências, perguntou se eu achava que ela tinha sido feliz. À queima roupa, respondi à desconhecida que achava que sim. Quase afirmação suficiente para todos os fatos narrados anteriormente serem acrescidos de valores e as suas dúvidas crescerem tal e qual o meu espanto e constrangimento.
“Será? Como posso ter a certeza?”
“Felicidade é um conceito subjetivo...”
“Isto é frescura de intelectual, Ou é ou não é!”
Assim encerrou minha conversa com a desconhecida. Um cheque-mate. Só restava saber quem estava em jogo.
Guardei meu constrangimento junto às suas incertezas e cheguei em casa com o tema para a crônica. “Será que fui feliz?” Não gostaria de viver a interrogação, principalmente, com uma desconhecida... Mas qual teria sido a origem de tão crucial dúvida?
Mas cheguei em casa com a chuva, a queda das árvores e o estouro do gerador. Quero luz! O barulho constante da serra cortando a árvore atravessada na rua, das sirenes dos carros de bombeiros e da Defesa Civil e talvez alguma organização de proteção às árvores caídas, dá o fundo necessário para os guardas com roupas e parafernálias cintilantes controlando o caos no cruzamento com apitos. Mas e o mergulho na felicidade?
Um espetáculo barulhento e colorido digno das festas de natal moderninhas com Papai Noel rebolando ou tomando um banho de espuma com a Mamãe Noel, mas estes são outros personagens distantes da minha tempestade de primavera.
O ônibus não consegue desviar. A chuva já acabou há pelo menos uma hora e os estragos ainda são graves no cruzamento. O pior é que logo hoje resolveram limpar a fachada do prédio com fortes produtos químicos e tive de deixar o carro na rua, estacionado embaixo de uma frondosa árvore. Não posso resgatar o carro na rua congestionada. E se a árvore cair? Será que o seguro cobre? É caso fortuito ou força maior?
Desisto. Ficar olhando para a árvore não vai fazê-la permanecer em pé.
Achei alguns incensos, mas o breve lume não ilumina nem mesmo aquela sensual fumacinha. Tenho de apelar. Pego as velas vermelhas com bonequinhos de neve em relevo e acendo. Chega! Não ia mesmo usá-las no Natal, era apenas decoração para suprir o conto de fadas natalino de minha filha.
Quando penso ter me acostumado à situação, Nanel, a filhote de lhasa apso, abandona sua concentração tibetana e resolve fazer coro aos barulhos extravagantes da rua. Buzinas, apitos, velas vermelhas, latidos... É demais para uma noite. O pior é quando acende a luz nos prédios vizinhos, e o nosso e os sinaleiros do cruzamento continuam às escuras com todos os ruídos, lamentos e apitos...
Gostaria de escrever uma crônica sobre a subjetividade da felicidade e do vazio dos que precisam ter a resposta nos outros, mas não me sinto iluminada. Talvez em bruxuleios, possa desabafar minha inquietação com o resto de toco de vela na cabeceira e com a cidade iluminada atrás da janela. A pergunta da senhora reverbera no pensamento insone “Será que fui feliz?”