NA MADRUGADA, O GRITO

Há vezes em que o universo parece falar com você. Assim como se tudo conspirasse para que um caminho fosse escolhido a invés de outro. Um dia, em que eu pensava tranqüilamente em absolutamente nada de importante, ouvi um grito indecifrável vindo da rua. Uma exclamação bem comum até:

- É azar, só pode ser azar!

A voz bradava como se o azar fosse palpável, como se o tivesse encontrado à beira do meio fio e trouxesse à sua mão a fim de comprovar o achado. Porém, nada mais pude ouvir. Nem mais um grito, nem mais uma exclamação, nem mais um passo.

Eu poderia jurar que a própria rua ficou incrédula por não ver nem sinal de quem gritou. Provavelmente, o alvoroço maior se deu por parte de alguns gatos que erraram o salto por causa do susto e caíram ao lado de alguns vira-latas no ciu famintos por sacanagem noturna.

Confesso que pensei apenas ter imaginado o grito, mas não. Foi bem real, e a prova disso foi meu próprio gato. Prostrado aos meus pés, ele levantou lentamente a cabeça quando se deu o grito. Seria coincidência demais um gato preguiçoso como o meu levantar-se exatamente após um grito daqueles.

Talvez a exclamação ouvida naquela noite tivesse sido desferida por um revoltado ou bêbado anônimo, enfurecido com alguma coisa e gritando alto para que ninguém e todo mundo ouvisse. Muitos diriam que foi conspiração do destino, outros, mais crédulos, diriam que foi, sem dúvida, um sinal do além.

Em todo caso, não acredito em nenhuma das duas hipóteses. Prefiro pensar que foi apenas uma pessoa simples, cheia de defeitos e problemas tentando desesperadamente ser ouvida. Péssima hora, pois de madrugada muitos dormem despreocupados ou preocupadíssimos com a própria vida. E os que não dormem pouco se importam com coisas importantes.