Coisas para fazer em São Paulo quando se está morto

Coisas para fazer em São Paulo quando
se está morto



Aprender inglês, por exemplo. Posso entrar em qualquer escola, a qualquer hora, assistir uma aula. Quando estou entediado assisto duas ou três. Depende do dia. Não me interprete mal, não sou um morto como os descritos por Érico Veríssimo no “Incidente em Antares”. Nenhuma parte do meu corpo está em decomposição. Estou, como dizer, mais light, ninguém me vê, vivo em silêncio, reservo-me pequenas vontades e pequenos caprichos, atravesso paredes, vou aonde desejo, às vezes com uma incrível velocidade, quando penso já estou lá, às vezes preciso de condução.

Gosto muito de ficar nas igrejas, em virtude do silêncio. Sempre encontro com outros mortos. Como sei que estão mortos? Simples. Eles olham pra mim. Outro dia uma mulher veio puxar assunto comigo e se atreveu, inclusive, a puxar a minha ficha. Disse que eu estava morto há sete anos, três meses e 15 dias. E que no velório as pessoas falavam baixinho: ainda bem, foi melhor assim, ninguém agüentava mais, já foi tarde, etc. Eu retruquei com toda simplicidade que todo mundo tem direito a opinião própria. E depois me afastei e fui flanar por São Paulo, que na minha opinião, descontando as crianças e uns poucos outros, é um grande cemitério de vivos.

Já aprendi tanto inglês que poderia ensinar os professores, mas é como já disse, vivo em silêncio. Cinema não vou mais, pois não passa um filme que preste. Não raro perambulo por bairros afastados e vocês não tem idéia do que eu já testemunhei de assassinatos, perpetrados por indivíduos que, digamos, por obrigações de contrato de trabalho, não poderiam agir desse modo. Não abro minha boca porque estou morto e se estivesse vivo também não abriria.

Na noite retrasada resolvi dormir numa pensão, duvido que tenha sido uma idéia genial, havia muita tristeza ali, muita esperança também, o fato é que custei a dormir. Oh sim, dormir é um privilégio dos mortos. Sempre sonho que estive em outros lugares, encontrei com pessoas animadas, estamos sempre fazendo alguma coisa, creio até que ajudo terceiros embora seja difícil afirmar categoricamente, as paisagens são lindas, com flores, bichos, águas e, em mais de uma vez, travei contato com pessoas queridas de longa data. Quando acordo sinto saudades.

Já passeei em escolas e hospitais e devo confessar, caso fosse possível dizer-lhe alguma coisa, que em sua grande maioria não podem ser chamados de locais seguros. São Paulo difere cem por cento da configuração exposta na minha mocidade, quando eu estava vivo e a vida parecia um sonho. Não que agora não pareça, pois parece, meu corpo é o mesmo corpo, tangível, pasme, apenas, colocando dessa forma, menos tirano e menos denso em relação a um saco de batatas do mundo dos vivos. Só isso. Como até agora não apareceu ninguém para me explicar nada, ou, para me encaminhar para outro lugar, vou ficando por aqui. Na época em que eu morri alguém me disse, com toda probabilidade através de um sonho, as seguintes palavras: vai vivendo pianinho. Pois pianinho estou.

Bibliotecas e centros culturais mostram-se boas opções para o estagio onde ninguém lhe pergunta nada e vice versa. Também é possível deparar-se com alguma novidade. Não me atrevo mais a usar o computador já que, da última vez que usei ocorreu um pandemônio, o encarregado de plantão viu as teclas se moverem sozinhas, o mouse idem, em suma, foi um Deus nos acuda.

Por essa razão abri mão dos bolinhos de bacalhau do Habbibs, que por noventa e poucos centavos a unidade é um quitute, sim, eu não pago, mas alguém paga, por minha culpa um garçom quase perdeu o emprego e a mulher que havia solicitado cinco bolinhos só comeu três. Prometi largar esse hábito e cada dia que passa venho mantendo a promessa, alguns dias com mais facilidade, o que me dá, quando o sol se põe, uma auto gratificação difícil de explicar. Afinal estou somente cumprindo minha obrigação, pois ninguém merece ter a sua vida atrapalhada por terceiros, estejam eles vivos ou mortos.

Desisti de bares há anos e anos, creio que por ter constado que ali muita coisa pode brotar das cadeiras, exceto felicidade. Paira uma eletricidade baixa, que a outros olhos parece alegria e que não passa de euforia. No meu estado divisam-se com facilidade ambas as freqüências. Prefiro a pensão, pelo menos lá a tristeza e a esperança são genuínas. Nos bares nada é verdadeiro, nem mesmo a água das cervejas. Os risos beiram a histeria e em mais de uma ocasião vi pessoas chegarem às vias de fato por motivos ilusórios.

Ontem a noite decidi dormir no meu antigo apartamento, o sujeito que mora lá, em dias de chuva, fica no ponto de ônibus com um olhar de a vida passou na janela. Ele tem um DVD e às quartas feiras visita a locadora. Coitado, um filme por semana. Eu já lhe contei que todo o conceito do Vídeo Cassete (VCR) centra-se na eventual necessidade de se gravar o programa preferido de TV? Ok, não posso lhe contar nada, mas não deixa de ser interessante o conceito da preocupação com a eventual necessidade. Bem, ontem ele assistiu “O Indomado”, um filme que ganhou três Oscar em 1963, com o Paul Newman. Fui assistindo e pensando, tive tempo para isso, o sujeito ia ao banheiro a cada 15 minutos. Pensei, basicamente, na mudança das coisas. E olhe, por mais que eu estude inglês, não ficou claro para mim em que ponto “Hud” se transforma em “O Indomado”.

Talvez, se a nossa comunicação fosse possível, você teria algo para falar sobre o título da presente crônica, que o mesmo beira o plágio, mas afianço que eu lhe devolveria com a informação de que em 1999 realizaram um documentário e um dos grandes sucessos da atualidade foi, com o perdão da palavra, escarradamente inspirado ali. Nossa cultura cola e copia com muito mais libertinagem no tempo presente do que na época em que Paul Newman interpretou o personagem chamado Hud.

Hoje ainda não sei onde irei dormir. No parque, se o tempo ajudar. É um programão, ver as estrelas entremeadas por alguma folhagem mais o barulho dos grilos. Sem contar a conversa dos bichos. No meu estado pode-se com facilidade constatar que os bichos conversam, que há séculos decidiram não mais falar conosco, seja para incentivo ou crítica, que ultimamente andam apreensivos e, talvez em virtude de uma defesa psicológica, passam boa parte do dia contando anedotas uns para os outros. Semana passada mesmo ouvi um pardal falando para um sabiá:

- Sabe o que o tomate falou para o gourmet? Não me chame de tomate quando você estiver com um garfo na mão.



Coisas para fazer em são Paulo quando
se está morto (2)





Quando se chega nesse estado, e toda vez que eu tiver oportunidade colocarei dessa forma, para não ficar maçante ou horripilante para envetuais leitores, obtém-se um ponto de vista assaz curioso sobre todas as coisas. Urge deixar claro que eu e meus camaradas não estamos nos andares de baixo, onde pessoas choram, rangem dentes (até os banguelas assim procedem), comem vermes gigantes, debatem-se numa substância muito parecida com lodo e volta e meia são espetados por um tipo de olhar malicioso que empunha um garfo maior que uma vassoura de piaçava. Nada disso. Como foi explicado no relato anterior, nossas únicas atividades são observar, passear e analisar os próprios erros. Adianto agora que ninguém evolui analisando os erros dos outros. Também não nos é permitido sair de São Paulo. Não me pergunte por que e saiba que ninguém protesta. Apenas nos parece claro e natural, assim como é claro e natural as formigas e os cupins procederem de modo idêntico tanto na Austrália como nas Filipinas, na França e no Brasil.

Ontem fui a uma reunião de mortos que acontece duas vezes por semana, numa sala vazia próxima ao metrô Paraíso. Dentre os presentes estavam a Flávia, que morreu há 13 anos, o Duílio, que tem olhos muito grandes e está morto há 5 anos, o Celso, que conta cada segundo, tendo passado daquela para esta há 4 anos, 3 meses e 5 dias e o Alfredo, que é completamente lelé e morreu há 32 anos. Essas reuniões são muito interessantes, poupam-nos das agruras da completa solidão e permitem a cada um de nós a troca de experiências. Aproveito para esclarecer que a evolução acontece com muito mais eficiência no plural do que no singular.

Ontem debatemos assuntos sobre a cidade e sobre o período anterior ao passamento de cada um. Alfredo cataloga a metrópole como suja, barulhenta, desrespeitosa, perigosa e pichada. As poucas ilhas que ainda existem estão em vias de serem exterminadas, e tem sido assim desde que o município descobriu a possibilidade de cobrar muitas vezes o mesmo imposto sobre o mesmo local, desde que as pessoas topassem viver empilhadas ao invés de arejadas e esparramadas.

Duílio nos conta que ia ver sua mãe, que era mais velha do que ele, e naqueles momentos ele se lembrava de quando era criança e estava com seus avós, que também eram mais velhos do que ele, mas que sempre teve a impressão de todos terem a mesma idade.

Celso dormiu parte da reunião, não obstante, quando acordado demonstrou sofisticada erudição, dizendo que o acontece em São Paulo é reflexo de idéias colocadas em prática em 1903, na América, quando Ford fundou sua empresa e Taylor enunciava os princípios fundamentais do seu scientific management, que apostava na organização do trabalho executivo, com o qual milhares de “homens robôs” poderiam contribuir, através da repetição infinita de poucos gestos privados de significação, para a produção em série de objetos materiais destinados ao consumo de massa.

Ficamos pasmos com o depoimento do Celso, mesmo sabendo que ele tinha lido isso num livro e não se dera ao trabalho de mudar uma só palavra ali escrita. Repetira tudo como um papagaio e ainda assim seria difícil tirar-lhe a razão.

Flávia narrou que na época precedente a sua mudança freqüentara igrejas e chegara a conclusão, por pura intuição, que as figuras ali representadas estiveram noutros locais da humanidade, noutros períodos, atuando sempre em prol da humanidade, que pouquíssima gente sabe disso e talvez seja melhor assim, do contrário ficarão loucos (mais do que já estão) e passarão a se matar (mais do que já se matam).
Ouvimos a Flávia com bastante respeito e atenção.

Chegou a minha vez de falar. Confessei ainda ter problemas com os bolinhos de bacalhau, que pensava neles em termos de dúzias, que adquiri recentemente o hábito de ver qualquer pessoa, incluindo a minha, como integrante do seriado Família Dinossauros e que todas as vezes que estou diante de uma TV exibindo o noticiário nacional, me vem a impressão de que aquelas imagens são relativas a outro século e a outro país.

Todos ouviram com consideração, Alfredo me deu um tapinha nas costas externando que o negócio com os bolinhos é assim mesmo e que um dia passa, e Duílio e Celso foram descorteses um com o outro, pois ambos queriam a palavra e só havia tempo para mais um depoimento. Fiquei tentado em votar no Celso, pois o Duílio sempre diz a mesma coisa: que precisamos todos andar de ônibus e ministrar energia positiva nas cores rosa, azul e dourado ao motorista, para que um dia ele perceba que conduz pessoas e não caixas de sapatos. Através de uma rápida votação Celso ficou com a palavra. Esfregando os olhos e bocejando ele nos contou que, por uma incrível coincidência cronológica, enquanto em 1903 na América pensava-se em “homens robôs”, determinado movimento na Europa idealizava a organização do trabalho criativo com o qual a “elite genial dos artistas, artesãos e empresários poderia conjugar o bem-estar material com a excelência estética, na tentativa de construir um mundo mais belo e mais feliz”.

Ainda não me comuniquei com os outros, a título de conversa fiada, mas sei que as palavras do Celso, mesmo não sendo dele, continuam ecoando em meus ouvidos.



(Imagem: Lorna Simpson)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 15/09/2011
Reeditado em 15/09/2021
Código do texto: T3221228
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