AFINIDADE
                                
                                Vamos fazer de conta, meu amigo leitor e minha leitora, que estamos numa casa chinesa para tomar um saboroso chá verde. Seria grosseiro se servissem logo o chá, o ritual exige uma conversa amena, sem tempo para acabar. Comecemos, pois, pela conversa e só ao final, vamos saborear o chá, representado pelo fabuloso texto que vamos tomar conhecimento.                
                               Mais ou menos por volta de 1975, comecei a ler umas belíssimas crônicas do Artur da Távola, cujo nome verdadeiro era Paulo Alberto.  Ele escrevia diariamente no jornal O Globo, segundo caderno.
                               Na época ele era crítico de teatro e novelas. Aproveitando os incidentes humanos que ocorriam, principalmente, nas novelas, o Távola nos brindou com crônicas que eu chamo de existenciais. Nelas,  apareciam os velhos conflitos humanos, as angústias, as crises de identidade, as loucuras do dia-a-dia de todos nós.  E o nosso cronista, como um mago, desfilava e analisava com maestria este turbilhão de emoções do ser humano. Foi um período de uns quatro ou cinco anos em que eu fiz uma verdadeira análise através de suas crônicas. Atravessava um período crítico do meu primeiro casamento.
                               O Lauro Cesar Muniz chegou a dizer que o nosso Távola escrevia em transe, não via nem ouvia nada ao seu redor, parecia um Preto Velho em terreiro de umbanda. Era um verdadeiro médium.
                               Cada crônica que eu lia parecia que ele havia escrito só  para mim. Era um espanto.  E metade do Rio de Janeiro sentia o mesmo que eu.
                               Quando ele  colocou  em livro muitas de suas crônicas do jornal, no ano de 1977,  eu estava na faixa dos trinta anos, claro, comprei imediatamente o  livro que ele batizou de “Mevitevendo”. Afinal, o homem era o meu analista,  sem  saber.
                               Na noite de autógrafos, no dia 18 de julho de 1977, no Cosme Velho, fui dos primeiros a chegar, com o livro comprado e já devidamente “devorado”, “mastigado” e “digerido”. Tive a sorte de poder conversar um pouco com ele. Um homem de uma simpatia cativante e de uma humanidade impressionante. Chego no que eu queria dizer aos amigos e amigas . Comentando sobre o porquê das minhas leituras, em dado momento eu digo a ele: “Távola, gostaria de dizer que a crônica que mais gostei, onde me identifiquei,  foi a última do livro, “Ato Leigo de Contrição”. Foi uma grande surpresa para ele, pois era exatamente a que ele também mais gostava, porque justamente nessa crônica ele confessa suas imperfeições, o que só um espírito nobre sabe fazer. Mais um pouquinho de conversa, ele pega meu livro e faz a dedicatória que está estampada no início desta crônica. Ao apontar a crônica da preferência dele tive sorte e acabei ganhando uma dedicatória não tão genérica, deixando-me envaidecido.
                               E para mostrar que ele havia sentido verdadeiramente um  impacto com minha revelação, na semana seguinte, ele ainda  mencionou este fato pelo jornal, que tenho guardado comigo com todo o carinho. É, como diz a nossa querida amiga Amethystte, com quem guardo muita afinidade, uma relíquia e que me incentivou a contar o que agora estou narrando. 
                               Ontem à noite, por um acaso, descubro na internet o texto sobre afinidade, do Távola. Custa-me entrar na seara do sobrenatural, mas ando desconfiado que o grande cronista lá das alturas, onde merecidamente deve se  encontrar, deve ter intuído que ainda preciso do auxílio dele e fez cair nas mãos esta pérola que vou agora transcrever. Até fiz uma modesta interação com o texto dele, que está, ao final, bem destacado, para não confundir com a pérola do Artur da Távola.
                               Depois desta cerimônia toda, como se estivéssemos tomando um chá chinês, sentados no chão, espero que saboreiem com muito gosto a profundidade do texto, que calou fundo na minha alma.
 
                                     AFINIDADE
Artur  da Távola
 
                “Não é o mais brilhante,
                mas é o mais sutil,
                delicado e penetrante dos sentimentos.
                Não importa o tempo, a ausência,
                os adiantamentos, a distância, as impossibilidades.
                Quando há AFINIDADE,
                qualquer  reencontro retoma a relação,
                o diálogo, a conversa,
                o afeto, no exato ponto
                de onde foi interrompido.
 
                AFINIDADE é não haver
                Tempo mediante a vida.
                É a vitória do adivinhado sobre o real,
                do subjetivo sobre o objetivo,
                do permanente sobre o passageiro,
                do básico sobre o superficial.
 
                Ter AFINIDADE é muito raro,
                mas quando ela existe,
                não precisa de códigos
                verbais para se manifestar.
                Ela existia antes do conhecimento,
                Irradia durante e permanece depois que as
                pessoas deixam de estar juntas.   
                AFINIDADE  é ficar longe,
                pensando parecido  a
                respeito dos mesmos fatos que
                impressionam, comovem, sensibilizam.
 
                AFINIDADE é receber o que vem
                de  dentro com uma aceitação
                anterior ao entendimento.
 
                AFINIDADE é sentir com...
                Nem sentir contra, sem sentir para...
                Sentir com e não ter necessidade de
                explicação do que está sentindo.
                É olhar e perceber.
 
                AFINIDADE é um sentimento singular,
                discreto e independente.
                Pode existir a quilômetros de distância,
                mas é adivinhado na maneira de falar, 
                de escrever,
                de andar,
                de respirar...
 
                AFINIDADE é retomar a relação no tempo que parou. Porque ele (tempo) e ela (separação)
                nunca existiram. Foi apenas a oportunidade dada (tirada) pelo tempo para que a maturação
                pudesse ocorrer e que cada pessoa pudesse ser cada vez mais”.
 
 
 
E eu termino dizendo:
                AFINIDADE, na verdade, está fora do tempo.
                Por isso, independente de idade, cor, religião, quando os afins se encontram,
                mesmo que  demore cem anos, eles têm certeza que nasceram um para o outro.
                E sentem, com toda força, que, uma vez que se conheceram, nada neste mundo
                pode mais separá-los.