Olhares
Sentado num murinho baixo com uma cerveja na mão e outras duas escondidas numa sacola atrás dele, fico esperando coisa alguma acontecer.
Vários carros passam por mim, outros tantos param devido ao sinaleiro que de tempo em tempo impede-os de seguir em frente, recebo olhares de todos. Não consigo deixar de imaginar a razão de tanto encararem-me, não sou tão bonito, e mesmo se fosse, há tanto para se observar. Penso que cabrestos prejudicam a visão destes que, tão avidamente, ficam a fitar-me.
Que não vêem o azul do céu, parecendo uma infinita piscina cloretada no firmamento; o verde da grama que forra o chão ao lado da calçada; a árvore que há anos permanece ereta em meio à cidade que cresce compulsivamente. Mas não somente tais criações naturais escapam à percepção destes que desperdiçam instantes de sua vida ao invés de apreciar muito mais.
Há também o trabalho do homem, olhando diretamente para frente vejo um pequeno prédio de poucos andares, com uma garagem aberta logo abaixo do primeiro andar, na qual estão os pilares que sustentam a estrutura. Como um par de pilastras suporta toneladas de concreto sem sombra de dúvida é mais interessante do que alguém sentado bebericando sua cerveja.
Então percebo que cada olhar é imbuído ode reprovação, e recordo de que para o ser humano é mais interessante fitar indignado e superior qualquer coisa que esteja em desacordo com seus preciosos ideais, do que aproveitar aquilo de belo que os cerca. Confesso que ao notar o que se esconde atrás dos olhares entristece-me, abro uma segunda cerveja já de humor prejudicado. Continuo com meus pequenos goles recebendo tais olhadelas desagradáveis tentando não dar-lhes muita importância, consigo apenas um pequeno grau de sucesso. A manhã, duma hora para outra, perdeu muito de sua glória, torna-se de um azul baço desprovido de graça.
Cada pessoa que me encara nubla mais meu estado de espírito, olham-me como se fosse lixo, pequenos goles crescem com uma raiva que tento deixar de lado. Devolvo o olhar dum velho com a mesma intensidade que me lança, devolvo-lhe toda a merda que passaram-me anteriormente todos aqueles que tinha visto até então. Não sinto-me nada aliviado.
O idoso franze o cenho, como se fosse seu direito exclusivo fitar atravessado uma pessoa, tenho vontade de socar-lhe a cara enrugada até que faltem-me forças, obviamente não o faço. O escroto permanece deste jeito por quanto tempo lhe permite o sinal vermelho, até que ele brilha esmeralda e o velhote enojado é obrigado a partir. Cada carro que para em minha frente carrega pessoas que agem exatamente como o velho, a cerveja passa a ter sabor de vingança.
Tomo um enorme gole para a revolta da mulher de rosto redondo que me encara, estalo os lábios sonoramente com um prazer que não sinto e busco uma satisfação que não existe num falso sorriso sarcástico; tudo num gesto fútil de birra adolescente. Irrita-me profundamente a prepotência desta gente que me olha como se fosse escória, que direito têm eles de acreditarem-se tão melhores do que eu? Continuo a devolver olhares com o mesmo desprezo que recebo, como existem tantos para me olhar, e só um de mim para combatê-los, logo canso.
Encaro fixo o homem que usa óculos de armação grossa e manda a filha, gorducha e ainda com os dentes de leite, calar a porra da boca? Para a mulher que usa brincos caros e fala sedutora com o amante ao telefone? Para que o rapaz de olhos arregalados que funga incessantemente? Não. Então porque pensa essa laia que pode repreender-me com olhares hipócritas, só por estar tomando uma cerveja numa manhã de sol? Quando percebo que minha paciência ameaça esgotar-se, tal qual a lata que seguro em minha mão, levanto e vou até meu carro, ainda tenho mais uma que deposito entre as pernas, aberta, e da qual tomo um gole antes de girar as chaves, dar partida e rumar para casa.
Arroto e dirijo não muito habilmente sentindo o frio da lata ainda gelada, da qual dou um golinho ou outro, entre minhas coxas. Paro de receber tais olhares, fico ainda mais irritado, enquanto passo por ruas esburacadas tento deixar de lado tal sentimento, parcialmente o faço.
Quase chegando ou desejo vejo um negro velho, de farta barba grisalha, sentado na calçada encostado num muro, bebendo pinga numa garrafa de plástico, olhando para o nada. Quando percebo nossos olhos se cruzam, vejo nele uma raiva que fulmina, tento entender a razão e então percebo.
Olhava para ele como olhavam para mim.