O som de chuva me desperta.

Deitado praticamente nu olho para a chuva que escorre languidamente pela janela. Esfrego os olhos cansados enquanto gozo duma considerável dor de cabeça. A coberta felpuda afasta o frio que, de outro modo, far-me-ia tremer, rolo para o lado vazio da cama, o calor de ninguém mantém-o fresco. Um embrulho no estômago, como se tivesse engolido dois quilos de carne moída crua faz-me engasgar, tateio o nada em busca duma garrafa de água que fica no chão ao lado da cama. Encontro-a vazia, arremesso-a de volta de onde veio e lembro de outra garrafa, escondida no armário.

Não sem hesitar afasto bruscamente as cobertas, o frio súbito me desperta, ouvindo gotas de chuvas tamborilando no vidro da janela caminho até o móvel velho, chafurdo tanto nele quanto na memória até encontrar o que desejo, um uísque meia boca pela metade. Deixo de lado a elegância e bebo direto do gargalo, volto até a cama, sento com os pés no chão gelado de frente para a janela que impede a doce água que cai do céu de atingir-me.

Faço a comparação, nada original, de lágrimas com gotas de chuva, como poderia fazer também com cachoeiras, rios, qualquer corpo de água que corra. No meu caso seria mais preciso comprar o pranto com uma goteira em telhado velho, você a ouve pingar no forro acima de sua cabeça, sabe que ela encharca algo sob a superfície mas não consegue encontrá-la, livrar-se dela, e lá fica a desgraçada, gotejando sem molhar algo fora do alcance dos olhos a troçar-lhe. Quanto mais bebo menos penso, sinto, entretanto algumas coisas são impossíveis de afastar da mente.

Dum segundo para outro a cama parece-me duma aspereza insuportável, levanto tomado de asco e lembranças desagradáveis, chuto uma calça que estava em meu caminho, saio do quarto com passos largos rumo à porta que leva ao quintal. Por mais que me mova rápidos as memórias de que tento livrar-me jamais deixam de morder-me os calcanhares. Saio porta agora e o choque com a água gelada que despenca desperta uma raiva mal direcionada em meu peito; como se a chuva devesse esquentar e a vida afagar-lhe com gentileza de mãe.

Ensopado ando a esmo pelo quintal, de braços abertos grito a plenos pulmões, lembrando da mulher que feriu, do amigo que abandonou, do choro que não veio, da dor que não vai. Com o rosto virado para o firmamento, neste momento dum cinza escuro sufocante, abro a boca e despejo uísque, com saber de mijo, que mistura-se com o sabor único de água da chuva. Engasgo e tusso quando a mistura rola garganta abaixo, aos tropeços chuto um banquinho velho que deteriorava-se ao relento, como um mendigo sem trapos velhos a cobrir-lhe.

Desabo no chão, saindo deselegantemente sobre o traseiro, ainda inflamado por uma raiva que não se apazigua, fruto duma tristeza que jamais desaparece. Solto um rosno quase inaudível, perdido em frente ao som dum trovão que ecoa por tudo; tomo outro gole que parece derreter minhas entranhas. Viro para um lado, segurando a garrafa o mais longe que consigo para o outro, vomito algo quente e doloroso que logo é diluído pela chuva incessante. Deito de costas no chão encharcado e tento recobrar-me, pouco depois desisto.

Mal consigo abrir os olhos, tanto pela exaustão quanto pela água que quando atinge órbitas desprotegidas fere, mas não tanto quanto muito mais que acontece. Soco o áspero chão de concreto antigo, não uma mas várias vezes, vejo que uma pequena mancha rubra bóia numa minúscula pocinha onde minha mão colidia vez após outra. Torno a entornar a garrafa, ou o pouco que nela resta.

Tenho a impressão de chorar, abraço-a mesmo tendo quase certeza de que aquilo que sinto nada mais ser do que sobras duma chuva poluída que escorrem por minha face. Óbvio que não é o caso, como poderia o morno duma lágrima sobressair-se em meio à frieza do viver, é algo que foge à minha compreensão. bebo mais um tantinho, tudo torna-se turvo e mais escuro, fico tonto ao ponto de não distinguir o alto do baixo, minhas forças mínguam, quero gritar outra vez e não consigo.

Fecho os olhos e a última coisa de que me recordo é o frio da chuva martelando meu corpo, e o som de vidro rolando por cimento.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 12/09/2011
Código do texto: T3215172
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