ANACOLUTO


 
 
Que palavra mais boba e feia. E não é palavrão. É um vocábulo bobo que homens cultos gostam de usar, não porque apreciem, mas falar mais difícil que seus colegas de nível. Modo besta de mostrar conhecimento ou rima.
Para quem não se lembra ou nunca viu, exceto os caracteres ingleses mais usuais que os brasileiros, é como dizer, por exemplo, “a paz, é a ela que aspiramos”, bobeira que significa sem seqüência, ou seja, é uma ruptura da ordem lógica da frase, de tal forma que um termo fica sem casamento sintático com os demais.
Eu jamais usaria esta palavra pelo simples som feio que contém. Mas Drummond usou. Usou numa poesia de nome “CONFISSÃO”. E que é bem o estado de espírito de uma dona de casa no trabalho diário quando o faz só por não ter a felicidade que esperava viver durante a vida.
Então bota um CD de quinze músicas a tocar, e vai cantando acompanhando o som musical como se ela fosse um instrumento. Quinze!
Enquanto a máquina de lavar funciona e outras coisas vai fazendo, sem parar para não pensar na sua condição, o dedo vai clicando o radio para pular para a música seguinte. O som da voz acompanhando é mais sonoro que o CD, então, que seja a próxima música.
E que seja a vida como é.

Chove lá fora. Frio no Rio. Por que tudo está mais triste hoje?
Uma sensação de desespero?
 
 
“É certo que me repito,
é certo que me refuto
e que, decidido, hesito
no entra e sai de um minuto.
 
É certo que irresoluto
entre o velho e o novo rito,
atiro à cesta o absoluto
como inútil papelito.
 
É tão certo que me aperto
numa tenaz de mosquito
como é trinta vezes certo
que me oculto no meu grito.
 
Certo, certo, certo, certo,
que mais sinto que reflito
as fábulas do deserto
do raciocínio infinito.
 
É tudo certo e prescrito,
em nebuloso estatuto.
O homem, chamar-lhe mito
não passa de anacoluto. “
 DRUMMOND