Insuportável excesso

Eu sempre dei amor demais às pessoas. Algumas achavam até engraçado, outras sufocavam. Plenamente compreensível. Elas, porém, recebiam esse amor de tal forma que agiam descompromissadamente. Eu ficava encegueirada e encantada, apenas fornecendo o amor no formato que me via capaz de transmitir a quem eu amava. Mas quem eu amava tinha uma incógnita no lugar de sentimentos e eu mal esperava para receber qualquer coisa em troca, só sabia dar amor, dar amor. As pessoas nunca entenderiam. Tampouco o mundo. E a culpa é inteiramente minha, pela primeira vez percebo. Minha vida está embaçada por meus olhos molhados, que demonstram como o amor é capaz de transbordar de dentro de mim. Costumava sentir-me movida pelo sentimento, muito além do meu eu físico e mental, muito além da racionalidade.

Era amor demais para suportarem. Amor demais para eu suportar. Um dia, abri os olhos e vi o que temia me fazer enxergar, senti a punhalada bem dada, justo por aqueles que eu só vinha amando e amando e amando, desmedida, ingênua, com a pureza que o sentimento carrega por definição. Descartara o arrependimento das minhas possibilidades, mas hoje o tenho francamente em meus olhos. Arrependida. Arrependida de ter amado e me feito tão feliz e entorpecida amando que cada mínimo gesto em retorno já era rapidamente medido como o suficiente para sustentar e balancear todo o amor que eu fornecia a cada instante. Mas não era. Havia um déficit evidente, que meus olhos despistavam, por estarem mais viciados do que nunca, fantasiando tolamente em cima de um único gesto bobo.

Sinto-me traída, mas não houve pacto nenhum, não havia como cobrar nada, tampouco gritar contra eles. Quem tem a culpa senão eu que os amei além de mim? Quem tem a culpa senão eu que me desfiz e refiz mil vezes por eles, para eles? Não me cansaria dessa condição, só que a punhalada que recebi dói em demasia, espalha meu sangue pelo chão, rouba as minhas forças, arruína os meus momentos que mais prezava. Estou me perdendo, tentando analisar onde errei. Estou confusa, mudando de ponto de vista a cada segundo. Mas a resposta é muito clara: eu amei demais e o amor em excesso mata, inevitavelmente, já diria a música do Queen “Too much love will kill you”. Estou morrendo em todas as minhas formas por ter amado demais. E o meu amor que lhes forneci? Onde está agora? Onde o desperdiçaram? Será que se nutriram de parte dele e a outra parte atiraram por aí? Enquanto isso, a outra parte deve estar sendo carregada pelo vento, destinada a ser vivida e dividida em proporções certas, daqui a milhões de anos, quando o Rio já for uma cidade submersa, num futuro muito similar ao de “Futuros Amantes” do Chico.

Infelizmente, parece que esse amor volta contra mim, volta embutido na força que utilizaram para cravar em minhas costas todo o despeito e indiferença. O ser humano me assusta. Parece que quanto mais é venerado, menos se importa com quem o venera. Obviamente não é sempre, mas uma vez acaba acontecendo com todos. Eu mesma já desprezei quem eu tinha nas minhas mãos. Eu, a mesma pessoa que se afogou em amor excessivo, desmedido, desproporcional. Entendam, eu era boba. E ainda sou. Tão boba que não podia conceber que o amor pudesse se desdobrar em uma coisa ruim ou que ações movidas por amor pudessem se revelar trágicas. O amor, para mim, era o que podia nos salvar. E depositei tudo o que tinha nessa salvação. Depositei tanto que agora me vejo sendo morta por ela. Aos pouquinhos. Como quem definha. Ao menos, sinto que, por ter essa consciência agora, ainda há tempo de me levantar, recuperar a vida. Mas já nem sei se quero… As decepções doeram tanto que rasgaram as esperanças que ainda podia cultivar, as esperanças que movem um ser… já não haveria mais o suficiente para me mover, não mais. Eu os amei com tudo o que tinha e o mínimo que podiam fazer em troca era me levantar agora, talvez limpar o meu sangue. Mas não vou implorar-lhes, tampouco pedir. Se for para eu levantar, que seja sozinha. Se for para eu suportar, que seja com uma força unicamente minha. Se for para amar, que seja a mim. No momento, porém, perdi sangue, perdi forças, me conformo com ficar no chão. Mesmo que em estado deplorável, pode não ser definitivo. Talvez, aos poucos, eu possa recompor e encontrar novas formas de fazer pulsar o meu coração. Tão bobo… tão acostumado a bombear em prol de amor destinado a eles… Terá que reaprender a trabalhar.

E continua, mais entortado do que nunca, continua, cada vez mais feio. Assisto a esse mundo girar. E sinto um vazio, estou sim meio morta, definitivamente. Morta… pelo amor. Tresloucado, descabido, defeituoso, talvez. Mas, ainda assim, amor.

Fernanda Vogt
Enviado por Fernanda Vogt em 11/09/2011
Código do texto: T3213369
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