Observando

Alguns utensílios não conseguimos adquirir na nossa própria Galáxia e somos constantemente obrigados a viajar longas distâncias atrás do que precisamos e ainda pagamos por isso. Tenho de admitir que desta fez a experiência foi muito interessante.

Ao caminhar até a Estação Intergaláctica eu presenciei alguns acontecimentos estranhos, abelhas mutantes me atacaram, carros desgovernados me atacaram, pessoas solitárias me atacaram e para estas ainda não posso fazer muito.

Uma dessas pessoas foi meu alvo de observação durante meu trajeto até Alfa Centauro.

Era um rapaz carregando um saco de lixo negro, apresentava ter alcançado a meia idade e seus olhos esbanjavam indignação, barba e cabelo a muito tempo abandonado pela necessidade de sobreviver, roupas sujas e rasgadas, mas um belo tênis.

O sujeito não pagou pela passagem e educadamente pediu para viajar comigo de graça, não puderam negar, não dessa vez. Não tendo onde se sentar e incomodado com os olhares assassinos de todos os tripulantes da nossa nave o rapaz deve ter entrado em pânico e se encostou na parede, de frente para mim, inicialmente de cabeça baixa.

Passei a observá-lo com cuidado, unhas sujas aparentemente abandonadas no mesmo dia em que seus cabelos e barba. Assim como é de costume nossos mendigos gostam de pedir dinheiro durante as viagens intergalácticas apenas por diversão, mas esse rapaz não disse nada apenas se encostou e arrumou seu enorme saco preto no chão com muito cuidado.

Nesse momento pela primeira vez o rapaz levantou a cabeça e me olhou diretamente nos olhos, ele tinha a mesma estatura que eu, mas me senti tão pequeno sendo esmagado por um olhar que implorava ajuda e compreensão. Em alguns segundos eu estava completamente sufocado e fui obrigado a desviar o olhar do sujeito.

Eu não aguentava mais.

Percebi que o sujeito maltrapido dos belos tênis pretos estava olhando pela janela, aquele Universo estrelado sempre me chamava a atenção durante essas viagens e pelo visto a ele também.

Contudo, passei a observar as outras pessoas que viajavam conosco, senti medo por ele, todos estavam fitando aquele rapaz. O olhar das pessoas sobre ele eram fulminantes, mortais, mas bondosos, caridosos e indignados ao mesmo tempo.

Evitavam olhar diretamente nos olhos do sujeito, pois o clima dentro da nave sugeria que todos gostariam de ajudar aquele rapaz, dar-lhe um banho, uma casa, uma chance de crescer na vida, mas ninguém fazia ideia do como.

Seguimos nesse clima durante algum tempo até que uma senhora Marciana entrou na nave em uma das paradas e parecia bem agitada, nervosa e ranzinza. Malditos marcianos com seu ódio pelos terráqueos, não são todos os terráqueos que querem dominar seu planeta natal, mas vai dizer isso para eles.

A senhora marciana não sabia onde ficar, odiava estar ali e se firmou próximo ao sujeito do saco de lixo preto. Ela não acreditava que aquele cara podia estar na mesma viagem que ela, estava chocada, apavorada e indignada de dividir o mesmo local que ele.

Olhou-o fixamente e de longe eu pude ler seus lábios maldosos dizendo...

" Minha roupa vai ficar fedendo a merda por sua causa. ".

Logo em seguida ela olhou para mim, olhou para os outros e foi para outro setor da nave, provavelmente desinfetar seu novo vestido que estaria muito mais limpo no corpo do rapaz do saco de lixo preto.

Pena que ele não deve gostar de saias.

Nesse momento eu vi que o clima na nave tinha mudado novamente, agora estavam todos conformados com a presença do rapaz, ninguém sabia o que fazer para ajudá-lo então resolveram não fazer nada conscientemente. Essa sem dúvida era a melhor opção.

Porém uma mulher alterou a corrente dos acontecimentos, ela deu sinal para descer em Júpiter, talvez estivesse indo ver a nova pista de corrida flutuante que tanto passava na TV, se aproximou do rapaz do saco de lixo preto e disse:

" Você aceita essas moedas? ''

Estendeu a mão e eu pude ver 3 moedas de ouro, não era muita coisa, não para mim ou para ela, mas aquele rapaz que até então não havia dito uma palavra olhou-a diretamente nos olhos sem acreditar no que estava acontecendo. Pegou as moedas da mão da senhorita e disse com uma voz embolada que eu mal pude compreender o significado, talvez ele fosse de Plutão o pessoal de lá não desenvolveu muito bem a fala ainda.

" Mu-muito obrigado. "

O rapaz tinha agarrado aquelas 3 moedas de ouro com suas unhas pretas e guardou-as em seu bolso esquerdo, ao cair as moedas provocaram um som metálico.

A moça desceu e imediatamente todos os nossos companheiros de viagem estavam confusos, inicialmente nervosos e furiosos com aquela mulher porque todos pensaram em dar-lhe moedas, mas após uma rápida análise resolveram não fazer isso. Era como se aquela mulher se achasse melhor do que os outros e por isso todos passaram a ter inveja do ato dela.

Começaram a descer em seus pontos e deixar moedas com o sujeito do saco preto, a partir daquele momento era obrigatório entregar moedas para o rapaz, ele era o Caronte da nossa jornada nas estrelas.

Durante aquela viagem o rapaz do saco de lixo preto foi julgado e condenado pelos olhares assassinos de cada um dos passageiros daquela nave e sua pena foi receber 3 moedas de ouro de cada um que se encontrasse com ele.

Finalmente tinha chegado a minha parada, Alfa Centauro, eu dei sinal e esperei ao lado do sujeito do saco de lixo preto que me olhava nos olhos agora. Ele jamais estendeu a mão ou demonstrou o desejo de ser ajudado por quem quer que fosse.

Nossos olhos se encaravam como em uma luta dos pesos pesados, minha parada havia chegado, eu comecei a andar e lhe disse:

" Boa sorte, amigo."

Ele continuou me olhando e abriu um largo sorriso com seus dentes amarelados e disse:

" Muito Obrigado."

Aquilo foi o minimo que eu podia ter feito, pois como diz o meu grande amigo Caio Fernando Abreu:

" Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso (...) ah, esse resistirá a todas as ciladas do tempo. "

Bartuka
Enviado por Bartuka em 10/09/2011
Reeditado em 17/11/2012
Código do texto: T3211950
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