Casamento

Eles não conversavam, já a vinte e cinco anos de casamento não trocaram uma palavra que fosse, não precisavam, bastava uma troca de olhares e se entendiam, os dois não precisavam mais que isso para conversar, ele olhava para ela, ela olhava para ele e pronto, grama cortada, comida feita, lixo do lado de ora, roupa limpa, por fim bastava um olhar e a vida estava perfeita, tudo no lugar, tudo no normal.

Até que um dia, ele cuidando da louça, que a pouco ela o olhara como pedido para tal tarefa, e ela cortando a alface, ele a olhou, ela apenas sorriu e colocou o cachorro para fora, ele a olhou de novo, ela sem saber o que fazer o olhou de volta, parecia confusa, ele nunca a vira assim, ela olhou em volta de si, para ver o que fazia de errado, e olhou de volta para ele, confusa, ele a olhou de novo, mas não surtiu efeito, ela olhou ao redor e, consternada, voltou a cortar a alface, em tiras, ele continuou olhando a mulher, cortando aquela alface.

Aquilo era terrível, ela estava o traindo, não podia ser outra coisa, ela já não o entendia, como ela poderia fazer aquilo com ele, ela o traia assim, na cara dele, como se fosse nada, como se ele fosse nada, ela o traia, com quem, não importava, ele agora era apenas mais um touro no pasto, pastando, enquanto a mulher o traia pelas costas. Ele só queria saber quando, eles sempre estavam juntos, gostavam assim, pelo menos ele gostava, ela ele não sabia, pelo que via nos olhos dela parecia gostar, ou não, nunca se sabe. Ela não podia traí-lo, não tinha tempo, trabalhava com a irmã dele, não teria tempo, mesmo que tivesse a irmã contaria, sim, contaria, ela jamais faria nada disso com ele. Nunca. Nunca.

Então era outra coisa, ela deveria querer divórcio, só podia ser, eles não estavam mais em harmonia, era por isso, ela queria o divórcio, queria se separar, não suportava mais ele, e agora queria que ele se fosse, ficaria com a casa, e um pequena pensão, ou não, ele não conhecia as regras para essas coisas, ela não o queria mais, não o entendia mais, não fazia mais sentido estarem juntos, não mais. Não, ela não queria o divórcio, não poderia ser tal coisa, de jeito nenhum, ela daria alguma pista.

Agora era a ultima opção, ela já não o amava, ele não podia pensar nessa possibilidade, era demais, aquilo seria a pior coisa que ela poderia fazer, deixar de amá-lo, por isso não o entendia mais, não havia amor entre eles.

Ela o pegou olhando-a, ele manteve o olhar, tentado dizer qualquer coisa, mas ela não entendeu, era uma pergunta, e ela não o entendeu de novo, duas vezes em vinte e quatro horas. Aquela era a gota d’água, ele tinha que fazer alguma coisa, ela não o amava mais, ela não o queria, e ele não podia permitir tal coisa. Ele se aproximou, devagar. Ela apenas manteve os olhos nele. Quando estava perto o suficiente, ele pegou a faca das mãos dela, tocando brevemente as mãos. Olhando profundamente nos olhos dela, e ela manteve o olhar pendurado no dele, e então surgiu, como uma convulsão, aquele sentimento reprimido podia ser rebelado, como um cão preso por anos em uma coleira, tinha que correr, fluir, percorrer a sala, manchar chão e paredes com tamanha ousadia.

- Não nos amamos mais? – a voz dele estava engraçada, meio sem jeito ainda, mas um tanto apressada para sair.

- Porque diz isso? – a mulher estava confusa, a voz dela era tão diferente do que ele imaginara durante aqueles vinte e cinco anos.

- Ora, você não me entendeu.

- E ainda não entendo, que quis dizer?

- Odeio que corte a alface assim.

- Nunca me disse isso antes.

- Eu nunca lhe disse nada antes

Amanda França
Enviado por Amanda França em 05/09/2011
Reeditado em 27/10/2011
Código do texto: T3202598
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