Um sonho estranho
Tive um sonho diferente dos que costumo ter, o que poderia significar agradável, mas não. Uma maneira mais acurada de definir esta diferença, seria lembrar que por mais que doam duas dores, jamais o fazem do mesmo modo. Não foi nesta última noite, que passei desperto em comunhão com a madrugada, que me ocorreu tal sonho, nem na anterior. Não lembro exatamente quando aconteceu, visto que até hoje, ao abraçar um irmão em breve despedida, voltou-me ele a memória.
Recordo que foi numa noite em que o sono parecia não realmente abraçar-me ou abandonar-me por completo, como mulher que não ama mas não aceita a solidão. Nestas noites a realidade mescla-se com ilusões, filhas do cansaço que desespera, criando um doloroso amálgama no qual aquilo que é torna-se diáfano, e o que não pode ser beira tornar forma. Quando não se pode precisar o que é sonho e o que não é, a mente trabalha de modo divertido, fazendo-nos crer que estamos imersos em algo que não exista, ainda que seja inegavelmente palpável. Em suma, um surreal paradoxo.
Então lá estava, num lugar que parecia completamente impossível, sentindo-me acomodado como se lá vivesse desde sempre. Sentia tudo ao meu redor, o chão sob meus joelhos, a penumbra duma noite carregada de bruma, o frio do ar que inspirava, o peso em meu colo. Às vezes tenho medo de deitar-me para dormir apenas para despertar como alguém inteiramente diferente, de ter sido toda minha vida nada mais que mísero sonho.
Outra coisa que vem a minha atenção é uma leve respiração proveniente daquele que pesa sobre minhas coxas, quente com odor acre, e a maciez de fios dourados que acaricio com uma mão. Vejo repousando em meu colo uma caricatura, ou melhor, um rascunho, do rosto de meu irmão. Digo isto, pois as linhas que traçam o contorno de suas feições não chegam a fazê-lo, mas sei quem é, e que está morrendo. Sei pela tristeza que enraizou-se em mim, se algo poderia fazer-me sofrer tanto, seria segurá-lo, incapaz de nada fazer para ajudá-lo, moribundo. De modo incongruente, ele sorri.
Balbucio algo desconexo, ele continua lá, morrendo e sorrindo, sorrindo e morrendo. Tenho noção de que em meio a ininteligíveis palavras imploro-lhe para que não se vá, o desgraçado apenas sorri. Passa-se lá quanto tempo, continuo a afagar cachos dourados e desejando que cada nova respiração não se mostre derradeira, mesmo tendo certeza de que ela virá tento enganar-me. Afogado em desespero e lamúria tento novamente falar, as palavras engrolam antes mesmo de sair boca afora.
Percebo que os olhos abaixo dos meus definem-se, pequenos círculos, cor de madeira envernizada, cercados dum branco cor de leite; perco-me neles. Quando o faço lembro dos meus, da última vez que os vi, pontos de barro sujo em meio a um vermelho irritado; prefiro focar nestes outros. Eles me fitam com paz enquanto sinto uma agonia sem tamanho que tende a crescer.
Cravo as unhas duma mão na palma da mesma enquanto rogo, sei nada dizer, que ele fique, que tanto suportei e que quase tudo poderia agüentar; menos vê-lo partir. Outro sorrir, desta vez sarcástico, sinto um aperto no ombro quando percebo uma mão de tez clara sobre ele. Não é uma pressão desagradável, muito pelo contrário, transmite conforto e acalento; com ele, o último esforço, vai a respiração que não terá seqüência. A mão cai desaparecendo num breu que até então não existia; tento gritar mas não consigo, quero chorar mas não posso, os olhos que me fitavam apagam-se numa alvura mortuária.
Madeixas louras escorrem para o infinito quando paro de suportá-las com a mão para, com ela, cerrar pálpebras que jamais o fariam novamente sem auxílio. Suspiro antes de baixar meu rosto, sentindo lágrimas, que não escorrem, por trás dos olhos e beijar, num beijo que é mero toque, lábios gélidos como a morte. Algo mais acontece, mas não lembro, quando percebo o sonho cedeu lugar a realidade fria e estou sozinho no escuro da noite.
Como este sonho perdeu-se não sei, sei que retornou num abraço, sei que dói esta memória, sei que espero que se perca outra vez, para ficar perdida nos confins de qualquer lugar.