Yakisoba Roadside
"Yakisoba: O yakisoba é um prato de origem chinesa que em japonês significa literalmente 'macarrão frito'. O fácil preparo e o custo acessível tornam o yakisoba um prato mundialmente popular, consumido em diversos lugares, desde 'fast-foods' a feiras populares. É prato indispensável nas festas tradicionais japonesas ('Matsuris')." (Wikipédia)
Avenida Ipiranga, calçada do outro lado da Praça da República, centro de São Paulo. O lugar mais improvável para se encontrar o prato referido no título.
Mas foi o que encontrei ali outro dia, numa visita que fiz à cidade, depois de muito tempo, por conta de um rápido curso que fui fazer. Quando vou a São Paulo fico geralmente nessa região do centro, entorno da Praça da República, talvez por um hábito adquirido em outros tempos, quando vinha fazer cursos pela empresa em que trabalhava, quando ainda não estava deteriorada.
Muitas coisas mudaram nessa região, infelizmente para pior. Pelas calçadas há menores cheirando cola, se não coisa pior, enquanto num quarteirão depois o carro da polícia faz a ronda (fico imaginando o que os paulistanos devem estar pensando sobre os altos impostos que pagam, ao toparem com tal incoerência). Os antigos cinemas já não existem, ocupados por garagens ou igrejas evangélicas. Os que subsistem passam filmes ou espetáculos pornôs. Alguns bons hotéis acessíveis desapareceram. Outros, para sobreviverem, incorporaram mais uma função, não muito nobre, à principal. O que eu costumava frequentar não é exceção. Também ele, acompanhando o que acontece com a região, está em decadência, exibindo nas paredes do quarto traços de reformas inacabadas. O frigobar está vazio e desligado, amostra clara de que ali existiram bons tempos. Se você só consegue pegar no sono no silêncio, ao começar a dormir pode se ver surpreendido por gemidos reveladores vindos do quarto ao lado. Mas ainda bem que duram apenas alguns minutos. Pode ser que comece a ouvir também da parede do outro lado, mas é só esperar mais alguns minutos. E pode ser que tenha a sorte de que seu quarto não esteja virado para a rua, de onde vem o barulho da algazarra de notívagos que parecem não saber o que significa dormir.
Como na viagem comera só um lanche, resolvo que tenho direito a uma refeição mais substancial. Início de noite, saio do hotel e vou vagar nos arredores para tentar achar algum restaurante decente. Também eles somem aos poucos da região. Na calçada da Avenida Ipiranga, menores cheirando cola. Pessoas apressadas indo embora para tomar ônibus ou metrô. Empregadas domésticas, contínuos, estagiários, operários, bancários, balconistas, seguranças, estudantes. Vendedores ambulantes em suas barracas de churrasquinho, bebidas e guloseimas diversas. Vem então a surpresa de ver entre eles barracas de yakisoba, feito na hora.
Parece que no Japão é comum o yakisoba ser preparado e vendido na rua. Tenho-o visto na minha cidade em eventos anuais de gastronomia japonesa e também nas feiras dominicais vendidos em pacotes fechados, semiprontos, para serem preparados em casa. Mas foi surpresa para mim vê-lo sendo preparado numa rua movimentadíssima da metrópole, para transeuntes da camada popular, mais acostumados a uma cultura culinária ocidental. Parece que o prato caiu no gosto do povo.
Ando alguns quarteirões, as alternativas não são animadoras. Flerto com a idéia do yakisoba, embora não seja fã de comidas de rua. Um certo desleixo no preparo, ingredientes suspeitos, temperos agressivos nesses tempos de patrulha alimentícia, levam-me a rejeitá-las. No entanto, por que não fazer uma experiência com esse prato de que gosto? O risco é de ter uma dor de barriga indesejável, mas será que aquele povo todo comendo já não fez o teste inicial?
Dou meia volta e retorno pela avenida Ipiranga. Paro junto a uma barraca sem lona, no meio da calçada. Um casal bem humilde, japonês ou chinês, comanda a feitura e venda do yakisoba. Em volta, pessoas comem, de pé ou sentadas em precárias caixas de madeira. O ritmo é frenético, pois há uma fila de pessoas esperando. Na verdade quem trabalha mesmo é a mulher, com impressionante virtuosismo, jogando no tacho o macarrão já cozido, o repolho, o brócolis, a cebola, os pedaços de carne de frango e vaca, o molho à base de shoyu, girando e misturando tudo com uma enorme escumadeira. O homem apenas administra, pega os pedidos, entrega os pratos e recebe o dinheiro. É uma equipe azeitada, a cozinheira e o garçom-caixa.
A mulher me encontra com o olhar e me dá um estranho sorriso, enquanto faz seus malabarismos com a escumadeira. Eu retorno o simpático cumprimento, mas fico com a pulga atrás da orelha. Sorrisos estranhos têm me ocupado a mente. Como o enigmático sorriso da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. E como, numa entrevista a um repórter de televisão, o escancarado sorriso da esposa de um bóia-fria cortador de cana, que morrera por excesso de trabalho, na sua ânsia de juntar o dinheiro necessário para pagar os exames do tratamento de um câncer que ela tinha. Que mulher pode gabar-se o resto da vida de que teve um marido que morreu de tanto trabalhar para salvá-la de um câncer? Talvez esteja aí a explicação do sorriso.
Creio que o sorriso deveu-se a ser eu da mesma etnia asiática, como que um sorriso de cumplicidade no meio de todo aquele povo de etnia européia ou africana. Ou talvez por me destacar um pouco, pelo vestuário ou aparência, no meio daquele povo humilde que ela atendia. Sei lá.
Enquanto penso nisso, espero minha vez chegar. De repente, ouço por trás de mim uma voz baixa, quase inaudível. Volto-me e deparo com um garoto negro olhando para mim. Embora eu não o tenha entendido, está claro que ele quer que eu lhe pague um prato de yakisoba. Pego de surpresa, meu instinto procura uma desculpa para recusar. Não tenho trocado, é a primeira coisa que me vem à mente e é o que lhe digo. O garoto se afasta, cabisbaixo. Arrependo-me de imediato, por sorte o garoto ainda me olha meio de soslaio, eu lhe aceno para se aproximar. Não são necessárias palavras entre nós, está pactuado que vou lhe pagar um prato. O prato pequeno custa R$3,00, o maior, R$4,00. Esperamos os dois, lado a lado. Por um breve instante, uma companhia, um amigo, na paradoxal solidão desta cidade. Para quebrar o gelo, pergunto-lhe se gosta de macarrão. Ele apenas acena timidamente com a cabeça. Pergunto-lhe se vai comer ali ou vai levar. Monossilábico, responde-me que vai comer ali. Chega a minha vez, digo ao garçom-caixa que quero um prato grande que vou levar e outro pequeno para o garoto comer ali mesmo.
Esperamos os dois. A mulher prepara nossos pratos, lança uma enorme porção de macarrão no tacho. Daí a pouco está pronto, a mulher é incrivelmente rápida. Devia concorrer a uma categoria no "Guinnes Book", "o mais rápido yakisoba do mundo". O garçom-caixa enche o prato de isopor menor, entrega ao garoto e depois vai buscar um garfo de plástico, que também entrega ao garoto. Este vira-se para mim e diz, agora claramente: "Obrigado". Sai comendo. Vejo-o sumir no meio da multidão, em direção a seu destino.
Enquanto espero o meu prato, penso se não devia ter pedido ao garoto para não cheirar cola. Mas arrependo-me desse pensamento pretensioso. Que direito tenho eu de pedir-lhe que saia dessa vida, se não tenho nenhuma alternativa decente de vida para lhe oferecer? Um prato de yakisoba em troca de um esforço hercúleo para a mudança de seu destino traçado? R$3,00 para mudar uma vida? Sorrio tristemente, com pena de mim mesmo. Tomara que o garoto encontre alguém que realmente faça a diferença para ele. Tomara que ele descubra que o mundo que o rodeia não é totalmente mau, que pessoas boas existem nesse mundo. Tomara.
O garçom-caixa entrega meu prato fechado numa sacolinha. Pago-lhe o que devo, agradeço e vou para o hotel. Na entrada, pego uma garrafa de água mineral, peço para pôr na conta. Enquanto, no quarto, vou degustando o yakisoba (até que não está ruim), torço para que amanhã os intestinos não resolvam se revoltar no meio do curso. Tomara que nada aconteça. Tomara.