Cobra no Violão
Como todo boêmio, ele tinha um violão. O boêmio nunca se disse um cobra, mas tocava no violão todos os acordes necessários pra alegrar uma boa seresta. No entanto, o violão dessa história não era o do boêmio. Era o meu.
Era um violão espanhol, que tinha um som maravilhoso e que necessitava de muito pouco esforço para ser tocado e para produzir esse som. Ele me foi dado por uma ex-namorada (minha primeira namorada), há muitos anos atrás, quando resolveu partir para a Bolívia, aonde iria se casar e viver. O violão lhe foi dado por sua mãe. Como havia desistido de aprender, resolveu me presentear com ele. Belo gesto né?!
O espanhol habitava nobremente o espaço entre uma poltrona e uma estante de livros, num pequeno escritório, na casa construída por meu pai (o boêmio) em Lumiar, distrito de Nova Friburgo, na serra fluminense.
Naquele dia, só estavam em casa o boêmio e sua esposa. Assim pensavam, até quando de passagem pela porta aberta do escritório, ele notou uma corda esticada sobre o tapete e pensou, meio invocado, quem poderia ter entrado lá e pra fazer o quê com uma corda? Ladrão, suicida, alguma criança? É, isso era coisa de criança! Só uma criança deixaria um vestígio daquele tamanho esticado no chão! Quase dois metros e meio delatando a invasão de domicilio.
Resolvido a investigar mais profundamente a questão, ele pôs um pé no escritório, porém, antes que pusesse o segundo, percebeu um sutil movimento. Um movimento na corda. Ou melhor, um movimento da corda. Sim, era mesmo a corda que se movia sob algum comando. Examinando mais a fundo constatou que o movimento obedecia ao seu (dela) próprio comando. Um olhar mais atento trouxe a revelação: não era uma corda, era uma cobra! Era realmente uma cobra, aparentemente feliz e amistosa, mas era uma cobra. Das grandes!
O boêmio imediatamente fechou a porta do escritório e foi até a cozinha informar à sua companheira que tinham visita. Contou com muito jeito, pra evitar pânico, mas, seja por falta de jeito ou excesso de pânico, naquele instante foi batido o recorde mundial feminino do salto em altura dentro de cozinhas.
A primeira fase da operação estava cumprida. Não haveria a menor possibilidade de sua companheira abrir a porta do escritório.
Agora, o boêmio iniciará a segunda fase: convidar a visita a se retirar. Pensou que seria melhor contar com alguma ajuda (para o caso de o visitante se revoltar). Tentou se comunicar com alguém pelas redondezas e, enfim, conseguiu o apoio do irmão de uma vizinha, que se apresentou, solicitamente, minutos depois, na porta de casa.
Contou-lhe o problema. Contou-lhe novamente o problema. Mais uma vez contou-lhe o problema. Quando já iniciar a quarta descrição do problema, percebeu que o prestativo senhor era praticamente surdo. Como uma cobra. A comunicação passou a ser através de largos gestos e altos brados:
- COBRA! ESCRITÓRIO!
-Hã?
- GRANDE. COBRA! ESCRITÓRIO!
- Hã?
Desistindo da comunicação verbal, resolveu levar seu auxiliar para o escritório onde, após abrir cuidadosamente a porta, ambos puderam avistar o que foi dito e não ouvido.
O escritório tem uma grande janela de frente para a porta de entrada. Da janela se vê dezenas de pinheiros e um pequeno lago, habitado por uma família de patos, algumas trutas e carpas. Ladeando a janela, duas poltronas para leitura e mais à direita a estante de livros. Entre uma das poltronas e a estante, o violão espanhol. A esta altura, o visitante estava junto ao rodapé, abaixo da janela, movimentando-se lentamente por entre as poltronas, rumo à estante, como se fosse escolher a leitura do dia. O boêmio e seu auxiliar aproximaram-se cuidadosamente e seguiram com os olhos aquele serpentear de cauda, por detrás da poltrona, até não verem mais nada. A cauda sumiu, mas a cabeça não apareceu do outro lado da poltrona. Perceberam então um novo movimento oscilatório. Era o violão que agora fazia movimentos pendulares da esquerda para direita e vice-versa. Com a ajuda de uma lanterna, o boêmio, com seu auxiliar às costas, iluminou o violão, as poltronas, a estante e nada de cobra. Deduziu então que o bicho teria entrado pela boca do violão. Voltou-se para seu assistente e disse:
- TÁ NO VIOLÃO!
- Hã?
- A COBRA! TÁ DENTRO DO VIOLÃO!
- Hã?
E novamente com a ajuda de gestos expressivos, dignos da época de ouro do cinema mudo, conseguiu fazer seu auxiliar entender que a cobra estava aninhada dentro do violão. O senhor então, talvez entediado com todo aquele cuidado, talvez buscando mostrar serviço ou quem sabe tentando impressionar, exibindo coragem e determinação, pegou o violão pelo braço e num rápido e preciso movimento o fez atravessar voando a janela e se esparramar na grama lá fora.
De boca pra baixo!
Haveria pois, a terceira etapa: desvirar o violão, permitindo que o hóspede, agora já expulso de casa, se libertasse e, caso fosse de sua vontade, voltasse pra natureza. Seguiram os dois para o local da aterrissagem e com um pedaço de pau, providencialmente longo, puseram o violão de boca para o céu. Nada! Algumas batidinhas no espanhol para avisar o hóspede que, ainda ali, sua presença era indesejada e pouco tempo depois, com tremendo ar de superioridade e desdém, dando língua aos dois chatos, o hóspede se retira. Sai em grande estilo, com direito a trilha sonora, executada por ele mesmo com o roçar de seu corpo escamoso na corda prima, fazendo ser ouvida uma suave e afinada nota mi, que infelizmente só pode ser apreciada por metade da plateia.
Bom, segundo informações, parece que o espanhol está em boas condições de saúde, mas de qualquer maneira, sei que preciso fazer-lhe uma visitinha e um minucioso exame visual e sonoro. Obviamente sem esquecer de, antes de acomodá-lo em meu colo, dar-lhe umas boas batidinhas com um longo pedaço de pau.