Ô Coisa Boa!

- Alô!
- Oi, filha!
- Oi, mãe! Tudo bem?
- Tudo. E você?
- Rindo à toa!
- É? O que houve?
- Olha só! Tive um dia horroroso!
- Foi?
- Foi! Peguei um senhor engarrafamento por causa de uma batida besta, ali, na entrada do viaduto.
- Hum!
- Depois meu chefe resolveu me aporrinhar...
- Por quê?
- Falta do que fazer, eu acho. À tarde, consegui, finalmente, cancelar o cartão de crédito, mas passei quase três horas no telefone aguardando enquanto elas “estariam providenciando” a minha solicitação. Um saco!
- Sei como é isso.
- Aí, na volta pra casa, mais trânsito. Um calor de derreter concreto e o ar condicionado do carro pifado...
- Ainda? Você não ia arrumar isso?
- E tempo, mãe?
- É... Realmente, seu dia foi péssimo!
- Pois é! E tem mais! Sabe quem foi que eu vi aos amassos com uma loira de fazer babar estátua?
- O Abe...
- Ei!
- Desculpa! "Aquele cujo nome não pode ser pronunciado"?
- Ele mesmo, mãe. Quase morri. Pra não matar, né!? Tive vontade de voar no pescoço da “zinha”.
- E ele?
- Deu um tchauzinho. E um sorriso safado! Filho da...
- Onorata!
- Desculpa! Mas que é, é!
- Mas, peraí, filha! Ainda não entendi! Você só me contou desgraça! Por que você está tão feliz?
- Ah, mãezinha! É porque, quando cheguei aqui, suada, descabelada, me achando feia e triste... Você sabe aquela obra que tem aqui do lado?
- Sei...
- Pois é! Quando eu desci do carro, alguém gritou lá de cima: “Ô, coisa boa!”
- Humpf! Deve ser algum desses peões mal educados!
- Mal educado nada, mãe! Ele salvou o meu dia!
- Como assim, filha!? Um grosseirão!
- Nossa, minha mãe! Você não sabe o bem que esses rapazes fazem para alguém com o ego tão em baixa como o meu estava. É um serviço de utilidade pública!! Entrei aqui me sentindo a maior “coisa boa”! Tive vontade de ir lá dar um beijo na testa dele!
- Onorata!
- Calma, dona Feliciana, calma! Tive vontade, mas não fui! Só acenei e dei uma voltinha.
- Filha!!
- O que tem, mãe?
- Minha filha! Não pode provocar esses sujeitos. Vai que é um tarado, pode ter segui...
- Ih, mãe! Péra! É a campainha! – disse a moça, interrompendo a mãe.
- Onorata! Não abre a porta sem ver quem é. Onorata! Onoratá!

Onorata deixou o telefone sobre a mesa da TV e foi atender à porta. Era o síndico. Sabendo que a moça mexia com proteção de animais, veio pedir ajuda para resgatar uma ninhada de gatinhos de um bueiro, na garagem. Ela esqueceu completamente da mãe e desceu com ele.

Enquanto isso, na TV, um homem gritava, espancando a porta:
- Abre! Abre, sua vagabunda.
E uma voz de mulher implorava, em pânico:
- Não! Não! Vá embora!
- Eu vou arrombar!
- Me deixa em paz! Eu vou chamar a polícia!
Um grande estrondo e, em seguida, a mocinha lamenta:
- Não! Nããããão!
- Vem aqui, gostosa! Vou te ensinar a não provocar um homem e depois correr!
Pancadas, sons de coisas quebrando, a mulher chora, grita, geme, enquanto o homem continua ameaçador, gritando grosserias, rindo.

Feliciana, ouvindo aquilo tudo, do outro lado da linha entra em pânico. Não sabe o que fazer, grita o nome da filha.
Enfim, decide ir até lá. Depois de muito insistir, consegue falar com um dos filhos. Já está com a pressão a 15 x 10 quando consegue chamar o segundo e lá se vão os três.

Onorata entra em casa carregando um grande caixa. Dentro, quatro bichanos famintos, miando como se a vida deles dependesse disso.
Vê o telefone fora do gancho, lembra-se da mãe, encosta os gatinhos a um canto e pega o aparelho. Ao ouvir o tu-tu-tu indicando que a mãe havia desligado, tenta retornar e, como ela não atende, vai cuidar dos bichos, providenciar água e comida para eles. Suada, suja de pelos de gato e fuligem da garagem, Onorata decide tomar logo um banho e ir descansar. No dia seguinte, ligaria para a mãe, desculpando-se por tê-la deixado plantada ao telefone.
Ao se deitar, percebe que os filhos do vizinho, ainda de férias, estão brincando de índio ou algo que o valha no apartamento superior. Impossível dormir com tal algazarra e, assim, toma um calmante suave e cobre a cabeça com o travesseiro.

Passados mais alguns instantes, a mãe chega, com os irmãos.
- Ué, mãe! Você não disse que ele tinha arrombado a porta?
- Pelo barulho pareceu, mas eu não sei...
- Toca a campainha!
Tocaram. Nada.
- Onorata! – chamou um deles, baixinho.
- Onorata! – o outro insistiu, um pouco mais alto.
- Tenta a porta! – pediu a mãe.
Tentaram. Trancada.
- Onorataaa! – chamou a velha senhora, a pressão a esta hora já beirava os 19 x 13.
Mais algumas insistências sem resposta e começaram a bater na porta. Alguns vizinhos se aproximaram curiosos, eles esclareciam o que estava acontecendo.
- Liga 191! – alguém sugeriu.
Ligaram. Os gatinhos, acordados por tanta agitação, começaram a miar e o som, do lado de fora, parecia um choro de mulher. Desesperados, mãe, filhos e vizinhos começaram a esmurrar a porta.
Onorata acordou assustada com a barulheira. Levantou-se ainda meio grogue e aproximou-se da porta.
Ouviu uma voz de homem sobressaindo-se às pancadas:
- Abra a porta, vagabunda!
Apavorada, sem saber que era apenas um dos vizinhos contando a outro a história ouvida de dona Feliciana, Onorata pegou o telefone e correu para o banheiro. Ainda ouviu um outro sugerindo arrombar a porta, antes de trancar-se lá dentro. Tentou ligar para a mãe. Nada. Ligou para as casas dos irmãos, ninguém. Ligou para a polícia, chorando.
Com dois chamados para o mesmo endereço, seu delegado destacou uma diligência.
Quando os homens da lei chegaram, ficaram assustados com aquela multidão na porta do apartamento. Foi um desespero, cada um querendo contar sua versão da história que já havia crescido muito em detalhes sangrentos.
No meio daquele inferno, dona Feliciana não resistiu à pressão alta e desmaiou.
Os filhos gritaram, os policiais se aproximaram, o povaréu cercou a desfalecida, dando palpites:
- Abre a blusa dela!
- Deixa ela respirar!
- Traz álcool para ela cheirar!
Seus guardas agiram com um pouco mais de profissionalismo, um afastou um pouco a multidão e solicitou socorro pelo rádio, enquanto o outro examinava a pobre senhora.

Neste intervalo, Onorata deu-se conta de que, quem quer que estivesse querendo invadir seu apartamento havia desistido e saiu de seu esconderijo. Por uma frestinha na janela da sala, viu a viatura lá embaixo. Achegou-se novamente à porta e ficou ouvindo.

- Pressão baixa? – perguntou um dos policiais.
- Não, senhor! – respondeu um dos irmãos. – Ela tem é pressão alta.
- Toma remédios?
- Toma, sim, senhor! Mas, tava muito nervosa!! Ela deve ter trazido o remédio na bolsa.
Acharam um frasquinho com comprimidos e o policial, delicadamente, colocou um deles sob a língua dela, que aos poucos começou a recobrar a consciência.
- Dona Feliciana? – chamou o policial.
Ao ouvir o nome da mãe, Onorata abriu a porta.
- Mãe!? – gritou, assustada, ao vê-la ainda no chão, ignorando totalmente a reação dos circunstantes.
Correu até ela, abraçou-a.
- Mãezinha!? Mamãe? Oh! Meu Deus! Mãe!! – choramingava, abraçando e apertando a velha senhora.
Enfim, dona Feliciana reagiu e, ao ver a filha ali, sã e salva, abraçou-a também, emocionada.
Vendo que a situação estava finalmente sob controle, os policiais dispensaram o socorro e começaram a dispersar a multidão. Que cada qual fosse cuidar dos seus afazeres, pois aquela família tinha muito o que conversar.
Ajudando a mãe a levantar-se os três filhos a conduziram para dentro do apartamento. Só então, Onorata deu-se conta de estar vestida apenas com uma camisolinha.
Envergonhada, apressou-se em fechar a porta, protegendo-se dos olhares alheios, mas não pode evitar de ouvir dois dos vizinhos ainda conversando:
- Mas é boa, hein?
- Ô!
A moça sorriu, pensando: "Ô, dia bom!"



Este texto faz parte do Exercício Criativo - Pelo Telefone
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