(Re)correntes

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Para Nattan, senhor de 40 anos, inconstante por capricho da natureza geminiana, as noites parecem eternas. Irrequieto[1], ele já deitou e se revirou na cama de madeira nobre, presente de casamento do pai e construída pelo senhor Pedrosa, incontável número de vezes; tentou ver na televisão um filme de suspense em preto e branco, da década de 30; folheou páginas de um dos nove atuais livros de cabeceira, robusta obra de ficção sem previsão para término da leitura, mas o sono não veio.

Quanta vontade há no olhar de Nattan ao observar as estrelas no céu pela janela entreaberta do quarto. Deveria existir algum entretenimento que o fizesse viajar na caixinha de calmante chamada sono. Algumas músicas possuem esse efeito sonambúlico. Algumas atividades humanas também. Os insones, todavia, parecem esquecidos das caixinhas, dos calmantes. E o sono fica restrito à fantasia do sonho.

Ele pensa descer os quinze degraus da escada em granito preto do sobrado onde mora, pegar o Volkswagen azul-caixão-de-anjo de estimação, modelo 68, e dar uma volta pelas silenciosas ruas e avenidas da cidade, desertas, talvez, pelo avançar das horas. Na mente cansada há muitas possibilidades vencidas pela decisão de adormecer a qualquer custo.

A solidão no frio da noite incomoda. Um: a mulher dorme tranquila exibindo um lindo baby doll preto, ofuscado pelo olhar turvado[2] em função do peso das teimosas e recalcitrantes[3] pálpebras. Dois: as filhas do casal, duas lindas crianças, esparramam-se nas camas, sonos pesados, copiosos, aquecidas por edredons[4] coloridos em azul, roxo, rosa e branco. Por último: não fazia muitas horas, o time do peito de Nattan sofrera primorosa derrota por 3 x 0 – essa lembrança asseverava-lhe[5] compassadas batidas do apertado e sofrido coração.

Pensa nos irmãos que estão distantes. Onde estariam às 03h34min53s? Norton, o mais velho, servindo nas forças de Paz, talvez estivesse no cumprimento de alguma missão, defendendo a liberdade de seres exógenos[6], ou dando um mínimo de dignidade ao povo recentemente destroçado ao ser submetido aos caprichos da natureza revolta. Nicholas, o segundo da hierarquia, provavelmente estivesse dormindo ou conversando amenidades[7] à mesa de algum bar – mais para a segunda opção; falando de História ou contando histórias cabíveis, única e tão somente, sob a motivação etílica[8] – nada como uma má dose de cachaça para abrir o ânimo ou revelar potentes oradores! Nader, o mais moço dos quatro, antigo parceiro de Nicholas, pelo horário, deveria estar de plantão, rondando vielas de lugares onde as leis são postas e servidas à queima-roupa; lugares onde o Estado finge chegar, apenas. Nos labirintos onde habita o povo pobre, os crimes acontecem aos borbotões[9] e as sentenças são prolatadas[10] sem delongas[11], sem palavreados bonitos. Delito[12], julgamento, sentença e posterior execução do que se decidiu... Tudo ocorre ao sabor da noite.

Geograficamente, os irmãos estavam separados. Trabalhando, bebendo, ou acordado por simples falta de opção alheia ao desejo interior, o tempo os mantinha todos acordados, estreitando, inconscientemente, os laços de consanguinidade. E os fusos horários distintos fechavam o ciclo da geografia influenciando a vida.

‘Faz tempo que não ligo pra nenhum deles’ – pensa Nattan. ‘Sinto saudade de quando éramos apenas crianças e nossos sonhos nunca estavam além de andarmos duas ou três ruas para brincar: comer abacates do abacateiro do seu Ari (foi lá onde quebrei meu pulso); bisbilhotar, pelas fechaduras das portas velhas e surradas, nossas ‘desavisadas’ primas e amigas delas durante o banho; jogar peão com o amigo Peixinho, hoje meu irmão de coração; brincar de jogar bila[13], furtar azeitona no terreno do DETRAN[14] – melhor que as estripulias que fazíamos em cima das árvores era o medo de levar tiro-de-sal do vigia, o Seu Merlosa – na realidade, torcíamos para que ele aparecesse e nos colocasse pra correr. Corríamos que o pé batia na bunda! Era bom demais!’

Desde muito cedo Nattan percebeu ter dificuldade para o sono e até buscou explicações para o problema. Outras surgiram sem convite. Para a mãe, professora da Educação Infantil aposentada, era dengo excessivo do pai – ele adorava dormir com o filho entre eles. Era a criança deitar e a mãe começar a esbravejar, reclamando. Para o pai, já falecido, os mimos faziam parte do desenvolvimento e o nenenzinho, o loirinho do papai, precisava do contato mais intenso com os genitores. Para o Seu Artur, farmacêutico renomado do bairro, era distúrbio simples, nada que um tarja-preta não resolvesse! O farmacêutico era excêntrico[15], usava sempre sandálias Havaianas, calça simples, sustentada por um cordão, mas tinha um atenuante: era botar o olho no paciente e acertar o remédio!

‘Tentaram curar-me’ – pensa Nattan. ‘Por que não tomei a droga daquele comprimido azul?! Se tivesse tomado, mas era tão imaturo... Aos 15 anos não tinha quem me fizesse, não tinha mesmo, tomar aquele remédio pra doido!’

Ah, noite! Torná-la porta-voz de agruras[16] é um desserviço[17]. Você também possui seus mistérios, encantos e mitos... O calor aterrador[18] do dia sempre cede espaço para o vento frio, após a Ave Maria. É você, noite, quem dá vida ao lobisomem. Os morcegos veneram[19] a magia do anoitecer; os poetas, o brilho da lua e o galanteio[20] do luar – sem a lua não haveria Marília. Nem Dirceu. Nem Marília de Dirceu[21]. As origens das rodas de capoeira foram gestadas no ventre aconchegante da noite – apesar da melancolia[22] e do cansaço, o brilho das estrelas e a luz dos astros, motivaram o surgir de nova arte. Sem você, noite, os trovadores[23] não teriam tanta inspiração no versejar, festejando a beleza feminina ao som e árias[24] de amor. E foi o amor quem gestou Romeu, Julieta... Sem você não haveria, acredite, noite, nem Romeu. Nem Julieta. Nem Julieta de Romeu. Nem Romeu de Julieta[25]... Nem a bendita insônia!

Nijair Araújo Pinto

Crato-CE, 27 de agosto de 2011.

04h03min33s

[1] adj. Muito inquieto; travesso. Agitado; revolto.

[2] v. tr. Escurecido. Perturbado. Embaciado. Embriagado.

[3] adj. 2 g. Que recalcitra; desobediente; obstinado.

[4] (francês édredon) s. m. Cobertura para cama, acolchoada e com enchimento de penas, algodão ou fibras sintéticas (ex.: capa de edredom). = edredão.

[5] Garantia-lhe

[6] adj. [Botânica] Diz-se dos vegetais cujo crescimento não se realiza no centro da haste, mas na circunferência. Estrangeiros. Estranhos.

[7] Fig. Tolices.

[8] adj. Em que entra etilo. Etilo: s. m. Radical que entra nos alcoóis e nos éteres.

[9] Borbotão s. m. Bolha de água que brota. Golfada. Jorro. Lufada.

[10] Prolatar (latim prolato, -are, estender, prolongar, demorar) v. tr. [Jurídico, Jurisprudência] Proferir uma sentença. Promulgar.

[11] Delongar v. tr. Demorar, retardar, dilatar. Fazer esperar pela decisão de.

[12] s. m. Infração à lei, ao dever; crime; culpa.

[13] Bola de gude

[14] Departamento Estadual de Trânsito.

[15] adj. Situado fora do centro. De centro diferente (a outro da sua espécie em oposição a concêntrico). Extravagante, original; que pratica excentricidades.

[16] s. f. Qualidade de agro. [Figurado] Aspereza. Desgosto profundo, trabalho, aflição.

[17] s. m. Mau serviço. Perfídia, ato desleal.

[18] Que ou o que aterra; que causa terror, susto, medo.

[19] v. tr. Demonstrar veneração por. Ter estima respeitosa por. Reverenciar. Ter em grande consideração.

[20] s. m. Ato de galantear. Amabilidades, finezas prestadas a quem se quer fazer a corte. Namoro.

[21] Manuel Bandeira registra que "nenhum poema, a não ser Os Lusíadas, tem tido tão numerosas edições". Sua importância na literatura de língua portuguesa é, portanto, basilar. Publicado em Lisboa, em 1792, ano em que Tomás Antônio Gonzaga partira para o exílio em Moçambique, relata seu amor por uma brasileira: Maria Dorotéa Joaquina de Seixas, de quem fora noivo.

[22] Tristeza

[23] Na lírica medieval, era o artista de origem nobre do sul da França que, geralmente acompanhado de instrumentos musicais, como o alaúde ou a cistre, compunha e entoava cantigas.

[24] Canções

[25] Romeu e Julieta (no original em inglês Romeo and Juliet) é uma tragédia escrita entre 1591 e 1595, nos primórdios da carreira literária de William Shakespeare, sobre dois adolescentes cuja morte acaba unindo suas famílias, outrora em pé de guerra. A peça ficou entre as mais populares na época de Shakespeare e, ao lado de Hamlet, é uma das suas obras mais levadas aos palcos do mundo inteiro. Hoje, o relacionamento dos dois jovens é considerado como o arquétipo do amor juvenil.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 29/08/2011
Código do texto: T3188405
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