O Mustelídeo
Quando acordei, pessoas pescavam trutas no laguinho em frente à casa.
Havia uma pequena criação e, como era Sexta-feira Santa, algumas seriam sacrificadas para o almoço. As crianças corriam pra ver aqueles peixes saindo da água com seus corpos brilhantes refletindo a luz forte do sol da manhã da serra, mas há poucos metros dali, alguém estava proibido de participar daquela brincadeira. Sem dúvida alguma, era o melhor pescador dentre todos e seria covardia a sua participação, mas não foi exatamente esse o motivo de seu afastamento. E prisão!
Prisão e enjaulamento! Sua falta? Ele era um mustelídeo! Sim, um mustelídeo. Esse foi o nome com o qual todos concordaram, ou pelo menos aquiesceram, com um silêncio de consentimento. A discussão acerca do que seria aquele animal foi grande: para uns, era uma lontra, para outros uma ariranha, para outros ainda, uma doninha. Estabelecido o impasse, consultei dois dicionários e um livro sobre fauna brasileira tentando descobrir a diferença entre lontra, ariranha, doninha e outros menos votados. Alguns textos e fotos após, resolvi chama-lo de mustelídeo, que parece funcionar como um nome genérico pra todos esses bichos.
Já há algum tempo que eu ouvia falar de um animal misterioso que, sorrateiramente, atacava as trutas do laguinho, sem ser visto por ninguém. Eu, intimamente, achava que era tudo lenda e que, na verdade, era o pessoal da terra que “visitava” o lago às escondidas. Naquela manhã vi que estava errado. O bicho existia. Vinha à noite pela beira do rio, subia o terreno em direção ao lago e, como peixe não late, trabalhava no silêncio da madrugada. Sua passagem só era notada na manhã seguinte pela quantidade de cabeças de trutas e carpas que boiavam, separadas do corpo, na superfície do laguinho.
Antes que toda a vida lacustre fosse completamente dizimada, foi construída uma armadilha. Havia uma cerca de bambu no veio d’água que saía do laguinho e seguia rumo ao riacho lá em baixo. Na cerca, foi aberta uma estreita passagem: a entrada da arapuca.
Naquela manhã de sexta-feira a arapuca estava habitada. Lá estava a doninha, ou lontra, ou ariranha. Enfim, o mustelídeo. Preso numa gaiola, de ferro e madeira, pouco maior do que o próprio animal que media uns 70 centímetros de comprimento por um palmo de altura. O bicho estava lá, disponível para visitações. Crianças e adultos iam vê-lo, para conferir sua beleza e ferocidade, vigiados pelo olhar do orgulhoso caçador que construiu a engenhosa arapuca.
O quadro daquela manhã era esse: pescadores de trutas; trutas no lago; trutas no anzol e no balde; caçador de mustelídeos; mustelídeo caçado; e público em geral. Era quase um parque temático e, no meu entender, o show estava quase no fim. Literalmente no fim. Pelo menos para o mustelídeo. O olhar do orgulhoso caçador não deixava dúvidas quanto ao destino que seria dado ao bichano.
Despretensiosamente tive a ideia de perguntar o que seria feito com o animal e, como ninguém respondeu naqueles dois segundos seguintes, sugeri soltá-lo, longe do sítio pra que não voltasse mais. Devolveríamos o elemento ao seu habitat, o rio. Não o rio Macaé, que corria ali pertinho, mas o rio Boa Esperança, há pelo menos 12 quilômetros do sítio. O caçador, em silêncio, me fuzilou com o olhar. Dei de ombros. Escolhi uma pretinha forte e bem disposta, que também achava um absurdo sacrificar o bichano, pegamos a arapuca, colocamos na mala do carro e pusemos as rodas na estrada.
No CD do carro, uma boa e ritmada música cubana: o disco Buena Vista Social Club. Falei pra minha auxiliar que aquela era música de Cuba e ela se mostrou bastante interessada e curiosa. Alguns metros adiante já comentava os ritmos e citava nomes como: mambo; xote; bolero; etc. Alguns daqueles nomes eu nunca tinha ouvido falar, outros eram similares aos descritos no folheto do CD e outros eram típicos do nordeste brasileiro. Enfim, era o seu universo musical e não cabia discutir sobre a autenticidade ou correção do que ela dizia, o que importava era que ela estava gostando do som e afirmando que já tinha dançado todos eles. Lá pelo fim da viagem, depois de ouvirmos cinco ou seis músicas, ela foi definitiva e absoluta: aquela era “música de escravo”. É! Sem discussão! Síntese perfeita, memorizada no sangue.
Passamos uma pequena ponte de madeira e onde tem ponte, tem rio. Logo adiante, ainda na estradinha de barro, paramos o carro, abrimos a mala, pegamos a arapuca e caminhamos uns 10 metros até à beira do riacho. Riacho de águas límpidas e velozes, que corriam por entre margens arborizadas. Pusemos a arapuca num declive bem próximo ao riacho e abrimos sua porta. O bicho permaneceu alguns segundos sem perceber a liberdade escancarada e nós ficamos esperando o sagrado momento dessa descoberta. O bicho permanecia se debatendo ferozmente dentro da gaiola, com suas patas para fora das grades, buscando contato com a terra, cavando o chão, até que percebeu não haver mais nada entre ele e o rio. Quando descobriu a liberdade, ventou! Saiu como um foguete!
Atabalhoadamante feliz topou com pedras e arbustos até encontrar a água fria na qual mergulhou e de onde, segundos após, antes de seguir rio abaixo, voltou à tona pra dar uma última olhadela pra a margem onde estávamos. Vimos o seu sorriso de felicidade e seu olhar de gratidão. Vimos até sua pata direita sair do rio para um aceno antes do mergulho do adeus.