Você já levou um teletequi?

A linguagem é algo vivo, que se transforma com o tempo. O nosso português, segundo os dicionários oficiais, possui mais de meio milhão de palavras que às vezes não são suficientes para expressar o que queremos.

Na literatura ou em nosso dia-a-dia podemos ter o prazer de ler ou mesmo de ouvir palavras que não constam em um dicionário. São chamadas de neologismos. São “criadas” por derivação prefixal e sufixal, abreviação, justaposição e aglutinação. É como se a língua fosse uma colcha de retalhos, junta-se peças de formas e cores diferentes e no final forma-se um belo desenho.

Desde o Modernismo, a liberdade de expressão e criação permitiu que encontrássemos em nossa literatura: o “vagamundear”, o “respeitabundo” de Oswald de Andrade, o “cachacista”, o “apenasmente”, de Dias Gomes, o “nonada”,o “sagarana” de Guimarães Rosa, e o “coracional”, e “pluvimedonha” do Drummond, dentre tantos outros.

Porém, se a língua é viva, e a escrita é um reflexo da fala, devemos procurar os maiores “ tesouros da neologia” (será que criei uma expressão nova?) nas rodas de conversa, no dia-a- dia. Mais precisamente é na boca do povo que podemos encontrar relíquias nunca antes catalogadas.

Há palavras tipicamente regionais. São usadas em regiões específicas do país. Quem nunca ouviu falar do mineirês, do goianês, da fala típica dos nordestinos? E ainda se formos mais a fundo, há aquelas que pertencem a uma pessoa, em particular, como se fossem personalizadas. Só um indivíduo fala e consegue se fazer entender pelas pessoas de seu redor.

Tive o imenso prazer de conviver com um usuário dessa linguagem personalizada. Minha mãe, Dona Jaci. Ela, uma autêntica goiana, filha de mineiros, sempre foi uma mãe exemplar e carinhosa, que vez ou outra saía com uma palavra nova. Procurei no dicionário, no Google, não encontrei nada. Algumas nem um radical catalogado possuem. As palavras realmente eram dela, ou nossa, já que herdei algumas.

“Suas palavras” não foram criadas aleatoriamente, seguem um padrão. E analisando-as pragmaticamente, evidenciou-se o que eu já desconfiava: ela sempre as usava quando estava contrariada, com raiva. Pelo menos, é o que eu, sua mais atenta ouvinte, pude perceber.

Selecionei algumas delas, e o contexto em que eram usadas.

Salamploro: este adjetivo era atribuído aos homens da casa, sempre que não comiam na hora certa, deixavam roupas espalhadas, chegavam atrasados (os desmandos masculinos típicos, quem é casado, e quem mora com irmãos adultos sabe o que quero dizer.)

Teletequi: sinônimo de palmada, de surra. Quando a gente estrapolava na bagunça, ouvíamos sempre a frase: “Vocês tão precisando de uns teletequi, meninada!” Ficava só na ameaça, nunca nos batia! Os “teletequi”, tomei e ainda tomo da vida...

Bussaina: me lembro a primeira vez que ouvi esta. Ela deixou cair por acidente uma leiteira de leite no chão da cozinha que tinha acabado de limpar. Imaginem a bagunça! Falou bem alto: “Mais que bussaina!” Acho que ela ia soltar um daqueles, resolveu no meio do caminho e acabou criando uma nova palavra, ou palavrão, sei lá! Este, nós não podíamos repetir, era considerado por ela uma palavra feia!

Incaficionado: vivíamos na roça, tudo era velho e quebrava constantemente. Era o adjetivo que ela usava para a geladeira, fogão, televisão e tantas outras coisas que viviam com defeito. E como todo adjetivo, concordava em gênero (não em número, pois plural para goiano é só para os artigos) com o substantivo: “A incaficionada dessa geladeira velha tá com defeito de novo!"

Purgante jalapa: quem mais poderia ser chamado disso? Nós, que além de sermos purgantes, não éramos qualquer purgante, tínhamos o diferencial de sermos jalapa! Sempre na hora da birra, da insistência comum das crianças, ela nos chamava disso.

Estes são os mais populares, que ela dizia com mais freqüência, todos nós temos nosso dicionário internalizado, e a ele que recorremos toda vez que vamos nos expressar, e o dela em especial, era bem mais vasto do que o meu.

Realmente, a linguagem é algo incrivelmente atraente! Encerro, com um poema do Bandeira, e prometo voltar falando das expressões que ouço por aqui! Um grande abraço!

NEOLOGISMO

(Manuel Bandeira)

Beijo pouco, falo menos ainda.

Mas invento palavras

Que traduzem a ternura mais funda

E mais cotidiana.

Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.

Intransitivo:

Teadoro, Teodora.

Meire Boni
Enviado por Meire Boni em 27/08/2011
Reeditado em 01/09/2011
Código do texto: T3184897
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