Das Fagott und das Gedicht
A cadeira de balanço sempre fez aquele barulho incômodo, como que marcando os minutos faltantes para a morte. É um ranger irritante, desnecessário, mas que se bem adaptado aos ouvidos, passa a não existir. Passa a não estar mais ali, espreitando mesmo assim, a sombra que vem acompanhada da poeira e das raras folhas tocadas pelo vento.
E o vento circunda o corpo que carrega a sombra, investigando cada uma das suas repartições, passando primeiro pelas pernas que mais se arrastam que caminham, depois pelo rosto com um sorriso sempre inexistente, pelos olhos tristes de uma pintura de Boticcelli, e enfim pelas mãos de delicada crueldade, que tanto martelaram um piano.
É a dança de partículas sólidas, manchando o terno de linho branco, retumbante e relutante em ser subjugado pela anarquia da natureza. Comovente de se ver em tempos tão pouco afeitos as sofisticações da Rive Gauche.
E o vento desiste de entender a arquitetura do corpo tomado da antiguidade, e segue seu caminho, para bem longe.
A sombra se transforma em música morrente, e finalmente em luz, quando o sol ilumina um rosto desconhecido, que carrega olhos eternamente familiares.Olhos que pousam sua eterna dúvida naquele que está assentado à cadeira de balanço, com um sorriso impossível. Um sorriso instransponível, imerso em tantas histórias e poemas duros, que mais afasta que convida.
É o sorriso de um violinista cujos dedos são mapas desenhados pela laceração das cordas. Para cada fissura, para cada fresta aberta, dentes mais e mais crispados, como que dizendo ao mundo de uma dor incalculável.
E esse, é o tempo do encontro, o tempo do recolhimento das almas. O tempo em que as lágrimas são solucionadas, e o tempo em que as palavras cessam seu efeito. Não existem.
Distantes um do outro, pelo espaço de uma escada de três degraus, há 30 nos de distância. Há séculos de desconhecimento. E chegar mais perto, para aquele que esteve tão longe, é matar o que de fato, ainda valia a pena na vida. Mas a vida se finda invariavelmente. E quando se chega ao limite de apenas três passos, não se recua. Jamais.
Disserem que a morte ao meio dia é gloriosa. E o nascimento, uma condenação. O que seria então?
Parado ante a imagem envelhecida de um corpo arqueado, da beleza reinterpretada, o pianista inclina sua cabeça para o lado e olha pra lugar nenhum. É o instante da fé. E uma lança hipotética atravessa um coração já morto. E o aproxima das dores de uma sexta feira.
O violinista tem agora seus olhos interrompidos pelo que o tempo descreve como: o ato de se retirar da vida. E por ser nem vida nem emoção, é que se pode finalmente usar, a sagrada forma de unirem-se duas almas como irmãs: a fala.
Quando esta se dá, é em meio ao tempo que cessou o vento, cessou o ranger da cadeira de balanço, e estagnou os vapores da água que iam em direção ao céu.Ela se nasceu como o prenúncio de uma caixa vermelha que se abre, expondo a consciência de dois mundos.
O pianista pergunta:
-é você?
E o violinsta:
-E poderia não ser?
E são tempos de distância, esfacelados como o espelho que reflete oculto as distorções dos olhos de quem vê.
Resta apenas um abraço. De dois irmãos antigos. De dois corpos iguais e ainda assim, incompletos.Desordenados e caóticos. Um abraço que foi guardado para o sol do meio dia, prestes a se jogar lá de cima.
O que as palavras emprestam aos homens, para se aproximarem dos anjos? Talvez o perdão. Talvez, a paz. Talvez, a escuridão.
Os pés cansados do pianista, agora se arrastam para o lado de uma cadeira que sempre esteve lá. 4 anos antes dele mesmo morrer. Porque era para ser assim. Era para estar daquele jeito. Era para ser inevitável. E o violinista não precisa dizer nada mais. Apenas observar a bruma que se eleva, e que irá em breve cobrir os corpos, plantados em bases de pedra, como estátuas de uma necrópole.
Seu violino já não grita mais. Está inerte e sem vida, dentro de uma cristaleira antiga. Não precisa mais dizer ao mundo, que morre a cada minuto, a cada nota dispensada.
O som do piano, este, é carregado na alma do pianista. É transportado como um pequeno alfinete, discretamente, sutilmente, preso à gravata branca. Jamais deixará de estar lá.
Será o envelhecimento? Será o frio que traz a paz?
Esse é o tempo descrito na varanda de uma casa antiga, com duas cadeiras de balanço. Elas rangem irritantemente. Uma marca os minutos em que a morte chegará. A outra, conta quantos “Eu te amo”, já foram ditos nessa vida. Uma equilibra, a outra surpreende. Uma cria, a outra inventa. E fácil como estender a mão, e dizer que amanhã será diferente, é viver cercado pelo vento que tenta entender mas pode apenas calcular.
E isso é o que se pode conhecer da noite, que jamais chegará. Estando juntos, morrentes ou distantes.
Assim, prescindi da religião.