Os Quatro Filhos de Francisca

(Bom, só espero que não sente ninguém no banco do lado. Assim posso colocar a minha mochila e ouvir a minha música sossegado.)

- Dá licença, vizinho? O meu banco é esse aí.

- Claro.

(Bah, que azar! E a mulher ainda por cima fede a clorofina... É certo que vai puxar assunto...)

- O senhor é de Pelotas?

- Não. Eu moro em Rio Grande...

- Eu também. Só vim visitá a minha irmã que tava meio doenta. Mas já sarou, graças a Deus. Agora tô vortando prá casa. Tenho que dar jeito nas roupas que tenho prá lavá. Os fregueis nem qué sabê, querem é as ropa, lavada e passada. Dispois, só eu que trabalho. Meu marido é encostado, tem pobrema de nervo, teve que se encostá.

(Mãos de lavadeira, grossas. Pano amarrado na cabeça. Vamos ver se ela me deixa ouvir música ou ler.)

- Tenho quatro filho. Treis filha mulhé e um filho home. Como nóis gostava muito de bolero quando era moço, botemo os nome dos filho por causa duns bolero que nóis dancemo quando nos conhecemo, num salão que tinha uma bandêra brasilêra no teto, cheio de luzinha, a cosa mai linda, vizinho. A mais velha se chama Labarca, o guri é Entumano, dispois vem a Perpétua e pur úrtimo é a Amanesca, a caçula. A mais velha é lavadeira que nem eu, mas mora em Arroio Grande, por causa de que o marido tem um bolicho por lá. Já me deu cinco neto. Tenho 42 ano e já sô cinco veiz avó.

(Meu Deus! Parece que tem sessenta anos!)

- O guri é o que se deu melhor na vida. De principio andou se metendo com uns marginal lá da vila. Pegaro ele com maconha e andou preso uns tempo. Mas foi até uma sorte. Tomou uns corretivo dos brigadiano e saiu de lá curado. Entrou pruma igreja evangélica e agora, graças a deus, virou pastor da Igreja Universal do Reino de Deus em Turuçu. As veiz ele até aparece numa propaganda na televisão na hora das novela.

(Ai! Tomara que ela não entre em assunto de novela!)

- Não sei se o senhor já viu. Ele é um moreno que aparece quando falam da igreja de Turuçu.

- Não, não vi, não senhora.

- O senhor preste atenção. O moreno é o Entumano. Como fala bem esse guri! Eu fico adimirada. Deve ter puxado ao avô, por parte de pai, que Deus o guarde, que tinha uma lábia! Era vendedor. Agora o guri me disse que vai me comprar uma casa prá mim. Tô torcendo. Otro dia até almocemo num bifê a quilo que ele me pagô.

- A outra guria, a Perpétua, tem uma banca no camelódromo. Ela e o marido viaja prô Paraguai quase tudo que é semana. Eles compra DVD virge e dispois copia os firme de sociedade com outro que tem os apareio e vende. Mas a coitada passa trabaio. Nessa época de fim de ano os policia bate nas banca e eles tem que sair com tudo, correndo, porque senão eles leva mesmo. Prá quê fazê isso com gente honesta que só qué trabaiá, né, vizinho?

(Pausa. Acho que vai desistir...)

- Ah! Mas não falei da mais nova. A Amanesca. Ela tá istudando na Furgui.

- É mesmo? Que curso ela faz?

- Pedagogia. Qué sê prefessora. Já até andô dando umas aula numa escola aqui da Vila Maria. Acho que era estágio. Essa guria passô trabaio, vizinho. Nem quera sabê. Ela ficou barriguda do avô quando tinha 12 ano. Mas mandô tirá. Inda bem. Quase morreu! O véio bebia. Era um gambá borracho. Meu marido deu uma coça de laço nele e mandou ele prá fora de casa. Nem sei que fim levô. Acho que até é pecado batê em pai, mas esse merecia uma tunda. Safado, senvergonho. Véio nojento. Acho que até que foi por isso que o Valdomiro começô a sofrê dos nervo e dexô de trabaiá. A guria deve deve se formá no fim do ano que vem. Ganhô uma borsa distudo. Assim é que os meus filho tão tudo criado e encaminhado na vida. Graças a Deus e a Nossa Senhora! (benze-se). Pena que nenhum deu prá cantá. Podia tá aí no programa do seu Raul Gil, né? (Sorri).

(Longa pausa. Ela pega no sono. A cabeça cai. Ora para frente, ora perigosamente para o meu ombro. A sacola de pano no colo. Havaiana nos pés, com as tiras encardidas.)

(O ônibus faz a volta no Trevo de entrada da cidade. Ela acorda.)

- Ih! Já passemo da Vila Maria?

- Ainda não.

- Ih, vizinho. Dexei cai todo o dinheiro no chão. O troco da passage. E agora?!

- A senhora deixe que eu procuro. Levante.

(Procuro e acho umas moedas)

- É isto?

(Ela conta.)

-Tá tudo aqui sim, vizinho. Deus lh’omente. Que Deus Nosso Senhor proteja o senhor e a sua famílha.

(Aperta a minha mão.)

- Meu nome é Francisca das Neves de Souza. (Sacode a minha mão). Quando quisé aparecê eu moro na rua 30 casa 7. Prá tomá um café e conhecê a minha famílha.

- Obrigado, dona Francisca. Tchau!

(Desce do ônibus e, lá da rua, me procura com a cabeça. Dá um abano e um sorriso aberto.)

Música incidental: La Barca

Música incidental: El Reloj

Deten el tiempo en tus manos

Has esta noche perpetua

Para que nunca se vaya de mi

Para que nunca amanezca