Surfboard

Não há nada mais maravilhoso para um adolescente, do que a sensação de liberdade. Ainda mais quando ele tem apenas 17 anos, entra num carro, enche a “máquina” de amigos e viaja pra Saquarema pra passar uns dias longe de tudo o que possa significar “dever” e “responsabilidade”, “horário” e “disciplina”. Quando isso acontece pela primeira vez (e ele sobrevive) sua vida nunca mais será a mesma!... É, ou não é?!

Café da manhã: eu faço as compras, você põe a mesa, o outro lava a louça. Ninguém pra reclamar a falta de camisa à mesa ou os pés descalços no chão. Ninguém interessado em saber quem escovou os dentes, quem passou muita manteiga no pão, quem está tomando pouco leite ou quem adoçou demais o café. Se, no final, a manteiga ficou fora da geladeira e estragou, finge que é bronzeador e passa nas costas de algum distraído. Se alguma xícara quebrou, varre o chão e “arquiva” os cacos na mochila mais próxima. Praticamente a sociedade perfeita!... É, ou não é?!

Todos nós, nessa idade, temos dons divinos. O músico toca melhor do que qualquer outro que se tenha notícia e será o futuro vencedor do Grammy. O atleta será o próximo campeão olímpico de sua modalidade. O poeta confia plenamente na publicação do seu primeiro livro, futuro “best-seller” internacional. A garota, explodindo em beleza e saúde, acalenta a carreira de “top-model”. O rato de praia desfila sua arte sobre as ondas, antevendo a glória pelas praias do mundo, no circuito profissional de surfe. O mais letrado e politizado prepara a sua carreira pública, na qual irá se destacar por acabar com as injustiças sociais. Que bênçãos! Tantos talentos! Bastaria a cada um de nós o nosso próprio dom para a completa felicidade e realização pessoal, mas... assim não é! E não falo sobre essa coisa de “dura realidade”. Nada disso! É que, para muitos, aos 17 anos, além de não existir essa “dureza”, todos queremos fazer nada menos do que... tudo! Tudo o que estiver ao nosso alcance! Tudo o que o mundo possa nos oferecer!

Então... lá fui eu, futuro artista, vencedor do Grammy... pra minha primeira manhã de surfe!

Gostava do preto e confesso que aquela roupa preta de neoprene me seduzia. Como não tinha uma, vesti minha bermuda (preta) e uma surrada camisa cacharrel (lembram?) de mangas compridas e que me deu suficiente confiança para enfrentar o mar e o necessário mimetismo para passar despercebido em meio aos reais surfistas que me rodeavam, com estilo e sabedoria. O amigo e professor passou as últimas instruções na areia e então, lá fui eu, mar adentro, com minha prancha emprestada e uma camisa que me garantia um mínimo de estilo e um frio do caramba!

De peito sobre a prancha, iniciei as remadas e, feliz com a facilidade encontrada, remei, remei, e remei. Remei sem me preocupar com o tempo e o espaço. Quando dei por mim, estava muito distante. Provavelmente a uns 500 metros da praia. Com as mãos roxas de frio, devido à baixa temperatura da água, e com um inocente sorriso de deslumbramento no rosto. Eu também era um surfista!

Passados alguns minutos, já um pouco cansado e totalmente satisfeito com aquela aventura, até então bem sucedida, resolvi remar de volta para a arrebentação e passar à etapa seguinte: sentar na prancha! Etapa que modifiquei, devido ao cansaço, e passei a executar ali mesmo, praticamente em alto mar, 500 metros distante do nascedouro das ondas, sob o olhar perplexo de algumas dezenas de surfistas que não conseguiam entender que onda estaria eu esperando, ali tão distante.

Já percebendo ser percebido, iniciei o procedimento “sentar na prancha”. Revisei mentalmente todos aqueles movimentos ensaiados na areia com o “professor”. Procedimentos revisados passei à prática. Quase consegui! A prancha escapou por pouco, mas eu a mantive sob meu domínio e consegui, disfarçando o esforço, deitar novamente sobre ela. Segunda tentativa: a selvagem resistência que ela oferecia ao domínio me espantou. Afinal, eu apenas queria me sentar sobre ela, como todos aqueles caras estavam fazendo, e permanecer alguns segundos assim! Não podia ser tão difícil!

A dificuldade aumentava a cada tentativa, mas resolvi que conseguiria! Com muito esforço, consegui. Então, pra mostrar naturalidade, cruzei os braços sobre o peito. Por baixo do nível da água, as pernas trabalhavam ferozmente e, ajudadas por nada graciosos movimentos da coluna vertebral, tentavam me manter na posição. Sentado sobre a indomável! O mais naturalmente possível! O que fazer agora? O esforço era absurdo e a queda era iminente!

Resolvi deitar novamente sobre a prancha e remar para junto dos “profissionais”, lá na arrebentação, aonde as ondas nasciam, cresciam e finalmente dariam na praia, de onde eu nunca deveria ter saído.

Já exausto, e agora junto de todos aqueles surfistas, rezei por uma onda pequena que pudesse me levar, de forma pouco traumática, para terra firme! Ôpa! Lá vem ela! Deitei e remei por sobre aquela inofensiva marola que, para mim, era um verdadeiro paredão! Comecei a pegar uma velocidade que extrapolava a força de minhas remadas. Surpreendente velocidade me deslocava! Sentia o vento no rosto! A prancha já se deslocava sem o auxílio de minhas mãos ou pernas! Passei a ser passageiro daquela prancha! Um misto de alegria e terror passou a dominar minhas emoções! A prancha já estava na onda! Descendo a onda! Não havia mais necessidade de remar! Inesperado sucesso! O próximo (e derradeiro) passo era ficar de pé! Eu não perderia aquela chance de SURFAR! Eu também era um surfista!

Segurando firmemente nas laterais, pus meus pés sobre a prancha e então... a selvagem caprichosamente escapou do meu domínio, por entre as minhas pernas, terminando seu deslocamento num imprevisível e indesejável choque com minhas partes baixas, após o que, seguiu solitária e independente pelo caminho que melhor lhe conveio.

Fiquei alguns segundos embaixo d’água, esperando a dor e a vergonha passarem, de onde emergi, lentamente, rumo ao meu sólido castelo de areia, onde fui muito bem recebido por aliviados sorrisos e consoladores tapinhas nas costas.

Hoje, passados tantos anos, permaneço em terra firme, feliz e seco. Não espero mais ganhar o Grammy e dessa experiência ficou apenas o desejo de me manter equilibrado no amor daqueles que sustentam a estabilidade da minha “surfboard” sobre os mares revoltos da vida!

Paulo Rego filho
Enviado por Paulo Rego filho em 26/08/2011
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