O Velho Relógio Arsonia
Desde menino, mesmo antes das aulas de Catecismo, escutei dizer que almas existem, são invisíveis, mas, nas conversas alhures, também visíveis quando aparecem. Muita gente valente confessava cortar, à noite, caminhos suspeitos. As aparições eram assunto dos comerciantes, sentados à calçada da A Barateira, em Pilar, sobre esconderijo de botija. Durante as férias, em Itabaiana, antes de dormir, Tia Dulce contava estórias de Trancoso. Mas, como se fosse um seriado do Cine Ideal, mesmo morrendo de medo, o último pedido seria sempre uma estória de alma.
Quem, no tempo de criança, não temeu, protegido pelo cobertor, nas noites de escuro e de ventania assobiando pelas brechas do telhado, alguma alma perambulando pelos corredores, derrubando retratos da parede ou panelas e copos na cozinha? Sufocávamos esses barulhos com o travesseiro. Na casa do meu avô, em Itabaiana, passávamos noites indormidas de medo ao ouvir o tique-taque infindável do relógio e os toques pausados das penúltimas horas da madrugada. Pressentia-se, algumas vezes, alguém dando corda no velho relógio americano que o avô Joca herdara do seu pai. As mais temidas almas eram descritas de branco; algumas simplesmente cobertas por um lençol esvoaçante; outras a capricho, de cabelos compridos penteados, descalças, mas elegantemente com colares de pérolas e vestidas de longos, porém sempre brancos. Tia Dulce contava que a minha tataravó nunca deixava o relógio parado e que sempre aparecia para cobrar que o “dito cujo” trabalhasse. Ai de quem esquecesse esse serviço: deixar o relógio da casa sem corda traria, à noite, a alma da velha para esse trabalho. Extasiados, havia arrepio geral. Confidenciou-nos, com muito suspense, que, certo dia, o relógio parou. E, quando acendeu a vela para dar corda, sentiu uma mão fria arrebatando dela a chave de cobre.
Observava a filha de Ananias que muitos mortos já tinham visto horas naquele antigo Arsonia, “made in USA”, em 1918. Certo dia, o relógio quebrou. Então o velho Joca retirou de onde estava aquele chamador de assombrações. O relógio foi embrulhado num saco de farinha branco e levado ao Mestre Cabral, afinador de piano, de sanfona, até da de Sivuca, e consertador de relógios de parede, que morava perto de Orlando Araújo e Hilda Duré, a caminho do Colégio das Freiras. Havia, na sua casa, muitos com teias de aranha, uns em forma de oito como o Arsonia, esperando reparo. Foi quando imaginamos quantas almas, de madrugada, ajudariam “seu” Cabral a consertá-los. O experiente consertador de relógio parecia ignorar assombros. Sorridente, convenceu-nos de que ninguém o amedrontaria, porque “alma só aparece a quem tem medo de alma”. Na parede da minha casa, ainda hoje o cansado relógio marca fantasmas lacanianos dos tempos de infância.
Desde menino, mesmo antes das aulas de Catecismo, escutei dizer que almas existem, são invisíveis, mas, nas conversas alhures, também visíveis quando aparecem. Muita gente valente confessava cortar, à noite, caminhos suspeitos. As aparições eram assunto dos comerciantes, sentados à calçada da A Barateira, em Pilar, sobre esconderijo de botija. Durante as férias, em Itabaiana, antes de dormir, Tia Dulce contava estórias de Trancoso. Mas, como se fosse um seriado do Cine Ideal, mesmo morrendo de medo, o último pedido seria sempre uma estória de alma.
Quem, no tempo de criança, não temeu, protegido pelo cobertor, nas noites de escuro e de ventania assobiando pelas brechas do telhado, alguma alma perambulando pelos corredores, derrubando retratos da parede ou panelas e copos na cozinha? Sufocávamos esses barulhos com o travesseiro. Na casa do meu avô, em Itabaiana, passávamos noites indormidas de medo ao ouvir o tique-taque infindável do relógio e os toques pausados das penúltimas horas da madrugada. Pressentia-se, algumas vezes, alguém dando corda no velho relógio americano que o avô Joca herdara do seu pai. As mais temidas almas eram descritas de branco; algumas simplesmente cobertas por um lençol esvoaçante; outras a capricho, de cabelos compridos penteados, descalças, mas elegantemente com colares de pérolas e vestidas de longos, porém sempre brancos. Tia Dulce contava que a minha tataravó nunca deixava o relógio parado e que sempre aparecia para cobrar que o “dito cujo” trabalhasse. Ai de quem esquecesse esse serviço: deixar o relógio da casa sem corda traria, à noite, a alma da velha para esse trabalho. Extasiados, havia arrepio geral. Confidenciou-nos, com muito suspense, que, certo dia, o relógio parou. E, quando acendeu a vela para dar corda, sentiu uma mão fria arrebatando dela a chave de cobre.
Observava a filha de Ananias que muitos mortos já tinham visto horas naquele antigo Arsonia, “made in USA”, em 1918. Certo dia, o relógio quebrou. Então o velho Joca retirou de onde estava aquele chamador de assombrações. O relógio foi embrulhado num saco de farinha branco e levado ao Mestre Cabral, afinador de piano, de sanfona, até da de Sivuca, e consertador de relógios de parede, que morava perto de Orlando Araújo e Hilda Duré, a caminho do Colégio das Freiras. Havia, na sua casa, muitos com teias de aranha, uns em forma de oito como o Arsonia, esperando reparo. Foi quando imaginamos quantas almas, de madrugada, ajudariam “seu” Cabral a consertá-los. O experiente consertador de relógio parecia ignorar assombros. Sorridente, convenceu-nos de que ninguém o amedrontaria, porque “alma só aparece a quem tem medo de alma”. Na parede da minha casa, ainda hoje o cansado relógio marca fantasmas lacanianos dos tempos de infância.