Vida velha

Ah, a cidade caminhava mais devagar. Lembro bem. A gente tinha bastante coisa pra fazer, mas as coisas passavam mais devagar. Trabalhava o dia inteiro na fábrica, chegava em casa e tinha mais coisa pra fazer. E pra divertir, não tinha muita opção. De vez em quando, uma partida de cartas. Ou bilhar, bolão. No final de semana, um baile, um casamento. Mas a gente ficava muito em casa também. Com a família. Tá vendo ali na parede? Mamãe teve treze filhos. Eu devia ter o quê, uns dois anos nessa foto. Faz muito tempo. E como mudaram as coisas! O pior é que a gente nem sempre se adapta né? Computador, essas coisas. Nunca mexi. Não sei se é medo, ou o quê que é. É mais difícil pra gente né? Mas sabe, essas coisas modernas deixam a gente mais distante. Eu vejo muito isso. Aqui na nossa cidade mesmo. Cada um no seu canto, uma coisa estranha. Não era assim. Às vezes dá uma saudade de como as coisas eram. Mas passou né, fazer o quê. E quem se interessa pelas coisas que passaram? Você é um caso raro, menino. Caso raro. Porque a gente não tem com quem falar não. A não ser os outros velhos. Só que os velhos vão morrendo. Do meu tempo tem poucos. Semana passada fui a dois enterros. Um era o velho Zépi. Aquele que tinha uma oficina lá na Getúlio Vargas, sabe? Você não deve ter conhecido. Não é do teu tempo. Era casado com a minha prima também. Amanhã já é a missa de sétimo-dia. Missa é outra coisa que mudou bastante né? Hoje não tem mais isso de ir lá todo domingo. Pessoal não respeita mais. E às vezes nem quem vai respeita direito. Essa juventude não respeita muita coisa. Você sabe que naquela rua de cima tem um colégio né? Cinco horas, a calçada aqui em frente vira um inferno. Eles descem a rua em bando e não querem nem saber. Se a gente tiver chegando ou saindo de casa, é capaz de ser arrastado. E as calçadas já são estreitas, daí se a gente encontra eles vindo, quem tem que descer é a gente. Não é fácil não. Mas vamos sentar um pouco, que a mãe fez bolo pra nós. Tem cuca também. Essa é da festa da igreja. Foi meu filho mais moço que comprou. Ele sempre passa aqui, mais ou menos por essa hora. Já devia tá aqui. Deve tá chegando já, aí você conhece ele também. Se fosse ontem, você ia conhecer uma das minhas filhas. Eles sempre tão por aqui, ajudando a gente. Ajudam com essa coisa de médico, remédio também. Coisa de velho mesmo. Eu gosto mesmo é quando todo mundo tá junto. Natal, ano novo, essas datas. Antigamente a gente fazia um almoço aqui, mas hoje a gente não dá mais conta né? Aí a gente sempre vai pra algum restaurante. Ninguém quer que eu pague, mas eu pego a conta e saio de fininho pra pagar. É a minha alegria, sabe? Todo mundo reunido. Os filhos, os netos. Ah, não te contei ainda, vou ganhar mais uma netinha. Esse meu filho mais novo que vai ser pai. Já tem uma filha, e agora vai ter outra. É bom porque deixa as coisa mais alegre né? Esse ano eu com a mãe nem ia fazer mais a árvore de Natal. Muito trabalho. Mas agora com criança, pode ser que a gente ainda faça. Porque elas gostam né? Mas coma mais! Quer mais refrigerante? Eu falo bastante né? Você não ligue não, que eu às vezes começo e não paro mais. Depois quero te mostrar o álbum de fotos do papai. Você gosta dessas coisas velhas né? Isso deve tá lá no sótão. Tenho alguns livros também, da história da cidade. Posso te emprestar. Tanta coisa bonita passou, sabe? Sim senhor, a cidade caminhava mais devagar.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 26/08/2011
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