Literatura de graça?
O homem caminha com certa dificuldade. Está bastante quente, uns trinta graus ou mais, e ele usa um terno que deixa evidente o desconforto que sente. Para em uma esquina tentando aproveitar a sombra, enquanto afrouxa o nó da gravata em busca de algum alívio. A pasta, agora no chão, parece ter um peso razoável, a julgar pelo volume. Retira do bolso um lenço com o qual seca o suor da testa. Tem o rosto bastante avermelhado e penso que está na iminência de ter um ataque cardíaco. Olho no relógio na parede à minha frente e confirmo que são três horas da tarde.
Trabalho já tem algum tempo nesta farmácia, e não me recordo de ter visto esse homem pelas redondezas, o que não é comum, haja vista que moro numa cidade muito pequena, sendo assim comum que conheçamos quase todas as pessoas que por aqui circulam.
O homem guarda o lenço, retoma a sua pesada pasta e lança um olhar ao redor. Percebo que olha em minha direção, e então cruza a rua, com passos lentos e mancando (esqueci, leitor, de comentar que ele aparentava estar bem acima do peso). Entra na farmácia e dirige-se até o balcão.
- Bom dia! Em que posso ajudá-lo, senhor?
Antes de responder, o homem pousa novamente a pasta no chão, apóia-se no balcão e solta um suspiro. Está ofegante. Penso imediatamente que irá pedir um copo de água, ou quem sabe apenas uma informação, pois era visível que havia decidido naquele momento entrar na farmácia.
- Bom dia meu jovem...desculpe se atrapalho o seu trabalho, mas tenho aqui algo interessante a lhe oferecer.
Mais um vendedor, pensei. Difícil o dia em que não aparecesse algum, mas o meu patrão logo se encarregava de, com certo jeito, dispensá-los. Ocorre que naquele momento eu estava sozinho, uma vez que ele havia saído. Agora seria minha a dura tarefa de convencê-lo que não tinha interesse pelo seu produto.
- O senhor é vendedor? Lamento, mas o patrão saiu, estou sozinho e não tenho um trocado sequer...
- Calma, não quero o seu dinheiro, quero apenas que me ouça por no máximo um minuto...
Pronto! Deve ser alguém anunciando a chegada do planeta Nibiru, ou do juízo final, qualquer coisa do tipo...logo para mim, o cético dos céticos...
- Tenho aqui comigo alguns livros, imagino que goste de ler.
- Gosto sim, mas...
- Não se preocupe, não se trata de nenhum devaneio do tipo “fim dos tempos”.
Nesse momento cheguei a pensar que ele havia lido a minha mente.
- Na verdade – continuou – tenho aqui vários livros de minha autoria. São contos, crônicas, causos...literatura da boa, pode acreditar. Eu sou escritor, desconhecido do grande público ainda, e tenho há muito tempo o hábito de sair apresentando o meu trabalho. Ando de cidade em cidade enquanto minha saúde assim o permitir.
- Mas eu não tenho dinheiro hoje.
- Sim, você já me disse isso. Mas esses livros que tenho aqui eu distribuo de graça. Você não precisa me pagar nada. Apenas escolha um para você.
De graça? Desconfiei...quem hoje em dia dá algo sem esperar alguma coisa em troca? De qualquer maneira, ele tinha uma boa oralidade, expressava-se bem, pensei que seus textos poderiam ser bons...por que não?
Com a minha concordância, ele coloca a pasta sobre o balcão e abre, mostrando o seu interior. Acredito que havia uns quinze ou vinte títulos ali dentro.
- Fique à vontade, escolha aquele que mais lhe atrai. Você gosta de quê? Contos? Crônicas? Ou quem sabe poesias? Escrevo poesias também.
- Gosto de histórias de suspense – respondi
- Então eu sugiro que fique com este – responde tirando da pasta um livro razoavelmente grosso intitulado O Filho Preferido – é uma história sobre um pai que nunca havia escondido a sua preferência por um dos seus filhos. Logo no início da história, ele, o filho preferido, é assassinado, e o pai tenta descobrir quem o fez, e o porquê do crime. Desconfia de uma antiga discórdia entre os irmãos, e por não terem muito dinheiro, a polícia acaba fazendo corpo mole nas investigações. Há uma boa dose de suspense, acredito que irá gostar.
Agradeço ao homem o presente e prometo fazer a leitura, embora eu mesmo duvide disso, afinal era um livro grande. Ele fecha a pasta, aperta a minha mão, visivelmente agradecido. Despede-se e ruma em direção à porta. Me distraio por um tempo observando a capa que mostra um retrato de família, daqueles clássicos, que mostram o casal ladeado pelos filhos. É uma bela foto e a apresentação da obra é de grande qualidade. Quando lembro de perguntar ao homem por que ele oferecia seus livros de graça, ele já está longe, do outro lado da rua. Ainda grito para que espere, mas ele não me ouve e logo dobra a esquina. Fico parado ali, sem poder alcançá-lo, já que não podia me ausentar do balcão. O problema é que agora ficarei com essa dúvida...afinal de contas, por que alguém se daria ao trabalho de escrever histórias, imprimi-las, e então ofertá-las a estranhos? Olho rapidamente em lugares estratégicos do livro em busca de algum contato, alguma informação sobre o autor, um email, coisas assim, e não encontro nada além do seu nome, em discretas pequenas letras, no rodapé da capa.